Fabricou-se assim um novo confronto entre o Judiciário e o Legislativo, contraproducente para uma repactuação social a propósito da ordem jurídica adequada às drogas e deletério para a harmonia entre os Poderes. Não é preciso entrar no mérito da controvérsia. Os equívocos de ambos os lados estão na forma de conduzi-la.
Os votos prevalecentes na Corte se fundamentam no princípio constitucional da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Condutas individuais não nocivas a outros não seriam passíveis de punição. Os votos contrários alegam o dever constitucional do Estado de zelar pela saúde de todos. Nesse sentido, não se questiona, por exemplo, a constitucionalidade de sanções a quem não utiliza o cinto de segurança ou restrições a quem não toma vacinas.
Mas o fato é que o Congresso já havia pactuado uma solução de compromisso na Lei de Drogas de 2006. O legislador distinguiu o traficante do usuário e, se não descriminalizou de jure o consumo, o descriminalizou de facto, praticamente despenalizando essa conduta. Pela lei vigente, ninguém pode ser preso pelo porte para consumo. As penas se restringem a advertência, serviços comunitários ou medidas educativas.
E, no entanto, foi a própria recusa do Judiciário em cumprir a vontade do legislador que detonou esta guerra institucional. Juízes punitivistas passaram a condenar de maneira arbitrária o mero porte como tráfico. A lei, de fato, não estabelece um critério objetivo de quantidade para distinguir usuário de traficante. Mas nem precisaria. Todos os anos surgem novas drogas e velhas drogas são alteradas, e não faria sentido fixar em lei uma quantidade para cada uma delas. Bastaria à Corte estabelecer orientações judiciais, periodicamente recicladas e adaptadas a essas constantes mudanças, para garantir a isonomia na aplicação da lei.
Ao invés disso, o STF está a ponto de descriminalizar o porte de maconha e estabelecer critérios de quantidade com força de lei. Como nem a Constituição nem a Lei de Drogas diferenciam a maconha de outras substâncias ilícitas, ao fabricar essa nova legislação das drogas a Corte estará atropelando competências do Legislativo.
Ferido em seus brios, o Senado agora move uma contraofensiva que só criará mais problemas. A rigor, a PEC não altera as disposições da Lei de Drogas e mantém a distinção entre usuário e traficante. Mas Constituições deveriam se restringir a consagrar direitos fundamentais dos cidadãos e princípios gerais para o funcionamento do Estado. O resto deveria ser deixado à legislação ordinária, que pode, com muito mais flexibilidade, adaptar-se às constantes repactuações de uma sociedade dinâmica – como, por exemplo, a propósito de seu entendimento sobre a ordem jurídica que deve regular as drogas. A prolixidade constitutiva de uma Constituição excessivamente extensa e pormenorizada já causa entraves demais a essas repactuações. Não faz nenhum sentido engessá-las ainda mais com mais um dispositivo de cunho penal.
Nem o Legislativo deveria constitucionalizar a criminalização das drogas nem o Judiciário deveria declarar inconstitucional a criminalização de uma droga específica. Melhor seria que ambos deixassem a Constituição fora disso, e o Judiciário se restringisse a aplicar a lei, estabelecendo critérios objetivos para garantir que os juízes a apliquem com isonomia, e deixando à sociedade e seus representantes eleitos a tarefa de sedimentar consensos sobre a regulação das drogas. É hora de o Supremo e o Congresso baixarem as armas e darem um passo atrás.