O brasileiro pagou menos R$ 280 bilhões em medicamentos desde que a política de genéricos virou realidade
(José Serra, no Estadão , em 23/05/2024)
Em breves pinceladas, o quadro da assistência farmacêutica e do acesso aos medicamentos era caótico em meados dos anos 1990. As empresas do setor abusavam do uso de seu poder de mercado na marcação de preços dos medicamentos que produziam, logicamente com baixa concorrência, dada a especialização dos produtos por patologias. Os inúmeros casos de falsificação e roubo de carga contribuíam para piorar o ambiente onde a assistência farmacêutica enfrentava dias críticos.
Muitos apontavam para a necessidade de buscar copiar os modelos da Europa e dos Estados Unidos, onde o acesso a medicamentos era muito melhor pela existência de produtos genéricos. A realidade desses países, no entanto, era completamente distinta da brasileira: os sistemas públicos de saúde eram responsáveis por dar acesso gratuito aos medicamentos, o que produzia um imenso poder estatal na busca de custos inferiores frente ao poderio das grandes empresas do setor. Dessa maneira, a política de genéricos, nesses países, era decorrência do acesso gratuito a medicamentos.
Enfrentar a questão no Brasil era completamente diferente, especialmente porque o Sistema Único de Saúde (SUS) conseguia proporcionar gratuitamente apenas uma reduzida parcela dos medicamentos necessários para o cuidado à saúde da população.
De forma bastante simplificada para o leitor, o medicamento genérico é aquele que possui o mesmo princípio ativo do medicamento de referência, cuja patente já teve sua validade expirada. No entanto, ter o princípio ativo não garante que o remédio tenha efeitos esperados iguais ao do fármaco de marca. É necessário que médicos e pacientes acreditem que o medicamento genérico tem o princípio ativo e produz resultados semelhantes.
Não tenho dúvidas de que o mercado jamais teria condições de construir a credibilidade no genérico por aqui. Por isso, à época, foi necessária a construção de uma política pública em várias dimensões. A primeira foi ancorar a garantia da eficiência do genérico na validação técnica do seu registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão regulador que acabara de ser constituído justamente para respaldar e fortalecer a Saúde e essa política pública específica no País. A credibilidade dos testes de bioequivalência e biodisponibilidade fundou a percepção positiva dos profissionais mais qualificados e espraiou-se por toda a classe médica, responsável pela indicação do medicamento, que firmou o compromisso de receitar pelo princípio ativo e não apenas pela marca.
Tão ou mais relevante foram a firmeza da intervenção no mercado inscrita na política dos genéricos e a ampla divulgação da questão. A população, em geral, passou a identificar que tinha o direito de exigir a receita pela indicação do princípio ativo e que passava a ter poder de barganha sobre os preços, com a opção do genérico. Mas a certeza de não perder em qualidade, garantia da Anvisa, era o pilar da nova condição do paciente.
Talvez tenha sido no campo empresarial onde o genérico conduziu a maior revolução, dada a obstinação da política governamental, que comprovou às empresas que o Brasil não voltaria atrás. Foram mudanças robustas e profundas. Muitas das grandes empresas investiram pesadamente em linhas de genéricos. Outras empresas licenciaram para terceiros a produção de medicamentos que já eram ultrapassados e que apenas sobreviviam pela ausência de alternativas confiáveis. Essas corporações, inclusive, passaram a modernizar seu rol de produtos ofertados, introduzindo no mercado brasileiro os produtos que suas matrizes já vendiam em mercados de países desenvolvidos.
Hoje, um quarto de século depois, os medicamentos genéricos cobrem 90% das doenças existentes, sendo oferecidos em 15 dos 20 princípios ativos mais prescritos no País. Os cem laboratórios que produzem os genéricos são responsáveis por cerca de 40% do volume total de vendas de medicamentos, o que representa 15% do mercado em valor. Logicamente, essa discrepância é derivada do fato de que os preços dos genéricos são inferiores aos dos medicamentos de referência entre 35% e 60%.
Há muitas formas de medir o sucesso de uma política pública, mas aqui há uma observação que se impõe. O brasileiro pagou menos R$ 280 bilhões em medicamentos desde que a política de genéricos virou realidade.
Vale sempre lembrar que uma política pública precisa estar fundada no conhecimento técnico e na disposição governamental de se enfrentar os desafios. Apenas dessa maneira é possível criar o horizonte para que os agentes sociais e econômicos se articulem em torno de um novo ambiente.