Levantamento do Estadão mostra que 13 das 27 assembleias e câmara legislativas contam com grupos contrários ao aborto; especialistas afirmam que, mesmo sem poder de legislar sobre tema, frentes podem se aproximar de eleitorado conservador e usar espaço como ‘vitrine’ de pautas ideológicas
Com a aprovação do requerimento de urgência que “abriu um atalho” no trâmite da Câmara dos Deputados, o projeto de lei que criminaliza a prática do aborto após 22 semanas de gestação está pronto para ser votado em plenário, o que fez com que o assunto explodisse no País. Apesar de o foco estar no Congresso Nacional, que é quem tem a competência para mexer no Código Penal e alterar os marcos legais sobre o procedimento, deputados dos legislativos estaduais também se organizam em coros contrários à interrupção da gravidez.
Um levantamento do Estadão mostra que 13 das 27 assembleias e câmara legislativas dos Estados e Distrito Federal tem frentes parlamentares contrárias ao aborto. A participação masculina nas Frentes é numericamente maior que a presença feminina. Somados, são 130 homens e 14 mulheres, o que, mesmo levando em conta a proporcionalidade inferior delas nas assembleias, mostra uma baixa representatividade nos colegiados que discutem o direito reprodutivo.
Em cinco das frentes parlamentares contra o aborto, nenhuma deputada participa das discussões. Em outras quatro, apenas uma parlamentar faz parte do grupo. Sete das frentes são coordenadas por deputados do PL, mesmo partido do ex-presidente Jair Bolsonaro e do deputado federal Sóstenes Cavalcante (RJ), que é o autor do projeto que equipara o aborto ao crime de homicídio. A sigla ainda lidera em presença nos Estados: entre os 144 deputados organizados nesses grupos, 43 são do PL. Em segundo lugar está o PP, com 15.
A presença em uma frente não significa, necessariamente, que o parlamentart apoia a pauta. Enquanto a maioria desses deputados são, de fato, contrários ao aborto, há outros que participam dos grupos para marcar um contraponto na discussão.
Especialistas consultados pelo Estadão dizem que esses grupos multipartidários até podem propor alterações de normas estaduais de saúde para dificultar o acesso ao aborto legal, mas a legislação sobre o assunto é da competência do Congresso Nacional. Ainda assim, a existência das frentes acaba servindo como uma “vitrine” para políticos exporem os temas que mobilizam seu eleitorado e para influenciar no debate sobre as pautas de costume.
Para o professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie Flavio de Leão Bastos, a atuação dos grupos no legislativo estadual é “muito mais política do que técnica legislativa”. “Os deputados estaduais que compõem bancadas religiosas podem, por meio dessas frentes parlamentares, estabelecer pressões sobre o Poder Executivo para políticas públicas contra o aborto, além de hastear uma bandeira para manter os seus eleitores, que são contrários ao aborto e mais conservadores, votando neles”, analisa.
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Diferente de uma comissão temática ou de um bloco, as frentes parlamentares não têm poder regimental. Elas são associações suprapartidárias de parlamentares, ou seja, não estão vinculadas a um único partido político e se organizam em torno de um tema específico de interesse comum, como saúde, educação, meio ambiente, entre outros. A principal função delas é articular debates, promover eventos e buscar a elaboração e aprovação de propostas legislativas relacionadas ao tema que defendem.
Quem explica é a professora de ciência política e coordenadora do Laboratório de Eleições, Partidos e Política Comparada (LAPPCOM), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart. “Uma frente parlamentar pode ajudar a formar consensos entre os parlamentares num tema de interesse. Por exemplo, uma frente parlamentar pode ter um advocacy em Brasília, alguém que faça lobby, que bata nos gabinetes de outros parlamentares que possam vir a votar junto”, exemplifica.
Essa articulação com sociedade civil ocorre, por exemplo, na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES). Encabeçada e presidida pelo deputado estadual Wellington Callegari (PL), a Frente Parlamentar Pró-Vida se reuniu três vezes desde sua instalação, em abril do ano passado, mas não aprovou nada concreto que possa dificultar o acesso ao aborto nos três casos em que o direito é garantido por lei, em situações de estupro, risco de vida materna ou quando o feto possui anencefalia.
Callegari aparece em publicações com a camiseta do Instituto Pró-Vida – onde se vê um feto e a mensagem bíblica “Não matarás”. Ele conta que representantes da sociedade são convidados para as discussões, como a Comissão de Direito Médico da OAB, o Ministério Público, representantes de hospitais maternidades, assim como entidades das igrejas evangélicas e da católica. O deputado garante, no entanto, que as discussões “nunca são levadas para um nível religioso”, e que o debate se mantém “científico, técnico e filosófico”. Segundo ele, mais de 300 meninas e mulheres “desistiram de abortar” em 20 anos de trabalho do Instituto que coordena.
Um dos projetos proposto por ele e discutido pela Frente é a obrigatoriedade do SUS fornecer uma ultrassonografia 3D para todas as gestantes que utilizem o sistema público de saúde no Espírito Santo. “O objetivo é que a mãe possa ver o que está dentro dela, antes de tomar essa decisão, no sentido de sensibilizar a mãe para não abortar. Conscientizar, eu diria”, explica o deputado, que se diz contrário a todos os tipos de aborto, em todas as ocasiões – fruto de estupro, contra vulneráveis e mesmo quando a mãe corre risco de morte. “Risco de morte não é morte, é sempre uma probabilidade. Nem sempre se confirma”, defende.
Oposição de dentro
O ato procedimental de instalação de uma frente parlamentar não significa que o debate sobre o tema tenha de fato avançado na Casa. Na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC), por exemplo, a Frente Parlamentar em Defesa da Vida foi criada em fevereiro do ano passado, mas desde então não realizou nenhum encontro. Composta por nomes como o da deputada estadual Ana Campagnolo (PL), que se considera “antifeminista”, e Jessé Souza (PL), bolsonarista conhecido no Estado por protagonizar polêmicas envolvendo pautas de costume, a frente conta com a participação de um petista.
Ao Estadão, o deputado estadual Fabiano da Luz (PT), de Santa Catarina, contou que sua presença entre os colegas de oposição é estratégica para ser um contraponto na discussão, que o parlamentar acredita que deva ser feita sob o viés da saúde pública. “Do mesmo jeito que eles estão na Comissão de Direitos Humanos, para fazer o contraponto conosco, nós estamos na frente parlamentar deles”, explica o deputado, que afirma que o trabalho da bancada do PT precisa ser redobrado, uma vez que são quatro deputados na Casa, que segundo ele conta com “maioria esmagadora” de conservadores.
O projeto que deu visibilidade ao tema no Legislativo ainda não tem data para ser votado. Após reação de vários setores da sociedade, a proposta deixou de entrar na pauta de votação do plenário da Câmara. Pesou para barrar a pressa na apreciação do projeto a constatação de que o texto prevê pena maior para uma vítima de estupro que aborta após 22 semanas de gestação do que para um estuprador.