Ministros fixaram uma tese que estabelece que a conduta não é crime, apesar de continuar como um ato ilícito com punições socioeducativas. Também determinaram um critério para diferenciar usuários de traficantes: porte de 40g ou seis plantas fêmeas.
(Fernanda Vivas, g1 — Brasília, em
Ministros fixaram uma tese que estabelece que porte de maconha para uso pessoal não é crime. — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução
O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou, nesta quarta-feira (26), o julgamento sobre o porte de maconha para consumo próprio.
Os ministros fixaram uma tese que estabelece que a conduta não é crime, apesar de continuar como um ato ilícito com punições socioeducativas. Também fixaram o parâmetro de 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar usuários de maconha e traficantes da planta, até que o Congresso Nacional legisle sobre o critério.
Cabe recurso da decisão, que deve ser aplicada em casos semelhantes em instâncias inferiores da Justiça.
Entenda o porte de maconha para uso pessoal
Por exemplo, se uma pessoa for flagrada com maconha, ainda que em quantidade inferior a 40 gramas, e haja elementos de que ela estava vendendo a droga, poderá ser presa e responder pelo crime de tráfico.
Além disso, o porte de outras drogas de consumo pessoal continua sendo crime, apesar de também haver a possibilidade de sanções administrativas.
A decisão do tribunal, no entanto, pode não encerrar a discussão sobre o assunto. Isso porque o Congresso Nacional – em reação ao movimento do STF no tema – trabalha para aprovar uma mudança na Constituição para tornar crime o porte de qualquer quantidade de drogas.
O g1 reuniu as informações sobre o julgamento, o que significa na prática e os próximos passos.
Qual foi a medida tomada pelo STF sobre o porte de maconha?
Os ministros concluíram o julgamento de um recurso que discutia se é crime o porte da substância para consumo individual.
Entenderam que esta ação não pode ser enquadrada como delito e fixaram o critério que vai distinguir usuário de traficante (entenda mais abaixo). Como esse processo tem a chamada repercussão geral, a determinação vale para casos semelhantes em todo o país.
LEIA TAMBÉM:
O que o Supremo decidiu?
Por maioria, a Corte definiu que não se enquadra como crime a conduta de portar maconha para uso próprio. Ou seja, uma pessoa que tem consigo uma quantidade da substância para consumo individual não responderá na esfera penal por delito.
O Supremo fixou que, mesmo que o porte de maconha nestas condições não seja crime, se a polícia encontrar a substância, a droga será apreendida.
Isso não significa que a prática foi legalizada. As pessoas não estão liberadas a uso em qualquer lugar. Quem tiver a substância, mesmo na quantidade fixada como de uso próprio, ainda estará cometendo ato ilícito, ou seja, violando a lei.
Se isso ocorrer, a pessoa estará sujeita a sanções como:
- advertência sobre os efeitos das drogas;
- medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Entretanto, conforme decisão do STF, vai se tratar de um ilícito extrapenal, sem a geração de um antecedente criminal.
As punições serão aplicadas pela Justiça, mas em um procedimento que não terá natureza penal. Os juizados especiais criminais cuidarão inicialmente do tema.
O Supremo legalizou a maconha?
Não. Para que isso ocorresse, seria necessária a aprovação de uma lei pelo Congresso ou uma resolução da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Legalizar é estabelecer uma série de leis que permitem e regulamentam uma conduta. Ou seja, liberar uma atividade, organizando as condições de seu funcionamento – regras de produção, venda, por exemplo.
Não foi isso que aconteceu. Não há autorização de qualquer atividade relativa a entorpecentes.
Até porque não cabe ao Supremo aprovar leis. Essa é uma atribuição do Congresso Nacional.
STF decide qual quantidade de maconha será considerada uso pessoal
O Supremo despenalizou o porte de maconha para consumo próprio?
Não. Despenalizar significa substituir uma pena de prisão (que restringe a liberdade) por punições de outra natureza (restrições de direitos, por exemplo).
No entendimento dos ministros, a despenalização já ocorreu e foi feita pelo Congresso Nacional, quando substituiu a Lei de Drogas de 1976 pela de 2006.
Isso aconteceu porque a nova redação passou a prever sanções que não envolvem mais prender o acusado. A norma anterior previa prisão para a conduta.
Se o STF não legalizou, não despenalizou, o que fez?
Houve a descriminalização, ou seja, a conduta deixou de ser crime.
Dizer que uma ação não é crime tem impactos significativos para o sistema de Justiça e a pessoa que atualmente é alvo de algum processo sobre a questão.
Essa definição tem repercussões na forma pela qual os casos são tratados pelo Judiciário e para o histórico criminal da pessoa.
Não sendo mais crime, não vai gerar reincidência, nem inclusão da conduta nos antecedentes criminais, nem suspensão dos direitos políticos.
Mas, é preciso ressaltar, uma pessoa que portar a quantidade maconha que caracteriza uso também não está agindo de acordo com a lei.
Ou seja, o entendimento se restringe a estas ações. Outras práticas que não se enquadrem nesses verbos poderão ser configuradas como tráfico de drogas.
Como será o procedimento?
Se a polícia encontrar a maconha com o usuário dentro do limite especificado, vai apreender a substância, notificar a pessoa que carrega o material a comparecer em juízo.
A polícia não poderá lavrar auto de prisão em flagrante, nem termo circunstanciado (procedimento para crimes de menor potencial ofensivo).
O que diz a lei e por que foi necessário interpretar o artigo que trata do assunto?
A Lei de Drogas, de 2006, estabelece, em seu artigo 28, que é crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal.
No entanto, a legislação não fixa uma pena de prisão para a conduta, mas sim sanções como advertência, prestação de serviços à comunidade e aplicação de medidas educativas (estas duas últimas, pelo prazo máximo de 5 meses).
Ou seja, embora a lei enquadrasse como delito, a prática não leva o acusado para prisão.
Os ministros discutiram a validade desse trecho da lei, e se a conduta poderia ser entendida como crime, mesmo não tendo pena de prisão.
Como a descriminalização pode afetar o tratamento dado ao usuário de maconha?
Ao longo do julgamento, os ministros citaram a necessidade de um novo enfoque para a política de combate às drogas. Em relação ao usuário, citaram a importância de se dar à questão um tratamento voltado para a saúde pública.
Estimativa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do g1 apontou que o Brasil gasta R$ 591,6 milhões ao ano para manter na prisão pessoas condenadas por portar até 100 gramas de maconha.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou nesta quarta-feira (26) que a decisão servirá para “aliviar a superlotação” do sistema carcerário brasileiro.
Por que é importante separar usuário de traficante?
Porque a Lei de Drogas não fez isso expressamente. Com isso, ficou a cargo da polícia, do Ministério Público e da Justiça fazer a distinção.
Sem um critério único, cada um estabelecia um procedimento para definir casos de usuários e traficantes.
A separação das duas situações deve ajudar a polícia e a Justiça a garantir tratamentos iguais para situações semelhantes.
Na prática, evitar que casos de usuários sejam enquadrados como tráfico de drogas pela falta de uma baliza clara para separar as circunstâncias.
O que pode acontecer com uma pessoa que é alvo de processo ou investigação sobre o tema?
Advogados de pessoas que são alvos de inquéritos ou processos podem pedir para encerrar as investigações e as ações penais em curso, se a situação de seus clientes for a de porte de maconha para uso individual, dentro do parâmetro estabelecido.
Nesta quarta, a Corte determinou que o CNJ realize mutirões carcerários para apurar e corrigir prisões de usuários de maconha.
Os ministros mudaram entendimento sobre outras condutas envolvendo a maconha, que não o porte?
Não. Outras ações envolvendo a maconha podem ser enquadradas como tráfico de drogas, a depender das circunstâncias.
Nesse ponto, é bom lembrar que a lei define como tráfico de drogas as seguintes condutas:
- importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
A pena é de 5 a 15 anos de prisão.
Como fica o porte de outras drogas para consumo próprio?
Não houve pronunciamento sobre as demais drogas. Os ministros restringiram a decisão ao que estava em discussão no recurso, que era o porte de maconha.
O ministro Dias Toffoli chegou a votar no sentido de que o porte de nenhuma droga para uso pessoal deveria ser considerado crime, mas a proposta não prevaleceu.
Para o porte de outras drogas para consumo individual, valem as sanções administrativas previstas em lei:
- advertência sobre os efeitos das drogas;
- prestação de serviços à comunidade;
- medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo;
Ou seja, o porte de outras drogas que não a maconha continuará sendo crimes, ou seja, gerará antecedente criminal para a pessoa que for flagrada nessa situação.
Quando a decisão começa a valer?
Geralmente, teses de repercussão geral já estão disponíveis para aplicação a partir da publicação da chamada ata de julgamento, uma espécie de resumo do que os ministros decidiram.
Cabe recurso?
Sim. É possível apresentar os chamados embargos de declaração, recursos que pedem esclarecimento de pontos da decisão.
Esse pedido é apresentado no prazo de cinco dias após a publicação do acórdão (a decisão colegiada na íntegra), porque ele deve ter como base justamente os detalhes do julgamento.
As partes podem solicitar, por exemplo, mudanças na redação da tese ou detalhamento de algumas questões.
Pacheco diz discordar de posição do STF sobre porte de maconha para uso pessoal e fala em invasão à competência do Congresso
O que acontece com a PEC sobre o mesmo tema no Congresso?
Mesmo com a conclusão do julgamento no Supremo, a PEC pode continuar em discussão. O texto já foi aprovado no Senado e agora tramita na Câmara.
Mas, neste momento, com o fim do julgamento no Supremo, o que deve prevalecer é o entendimento do tribunal sobre a questão, já que a PEC ainda não teve a análise concluída no Congresso Nacional.
A proposta dos parlamentares só terá efeitos jurídicos quando for aprovada pelas duas Casas e transformada em emenda.
Por que Congresso e Supremo podem tratar do mesmo assunto?
Cada instituição está agindo de acordo com suas atribuições constitucionais.
A Constituição elegeu o Supremo Tribunal Federal como seu guardião. Neste papel, cabe ao tribunal analisar questões que envolvam princípios constitucionais e direitos fundamentais.
Em relação ao porte de drogas, o Supremo foi chamado a se posicionar a partir de um recurso que discutia a questão.
No pedido, houve o questionamento da validade do artigo da Lei de Drogas que enquadrava a conduta do porte de drogas como crime, diante de direitos como o da intimidade e privacidade, além da saúde. Foi a partir desta baliza que os ministros se debruçaram sobre a questão.
Dentro desta atribuição, os parlamentares fizeram andar uma proposta para mudar o texto constitucional, deixando expresso nele que a conduta de possuir e portar qualquer tipo de droga. A PEC, no entanto, prevê a possibilidade de distinguir usuários de traficantes.
Por que os dois Poderes podem decidir de forma diferente?
As decisões do Supremo Tribunal Federal não vinculam o Poder Legislativo, ou seja, não impedem que os parlamentares aprovem uma legislação totalmente contrária ao que foi fixado pela Corte – por lei ou emenda constitucional. Isso ocorre por conta do princípio da separação de Poderes.
Mesmo se eventualmente o Congresso mudar a Constituição, o tema pode ser rediscutido?
Sim. Se a PEC virar uma emenda à Constituição, a partir da promulgação, o tema pode voltar a ser questionado no Supremo Tribunal Federal.
Não há impedimento para que as autoridades que têm o poder de questionar leis na Corte – partidos, presidente da República, PGR, entre outros – contestem a nova emenda.
Ou seja, na prática, o tribunal pode voltar a se debruçar sobre o assunto.
Já aconteceu algo assim recentemente?
Sim. A situação mais recente envolveu a validade da aplicação do marco temporal para a demarcação de áreas indígenas.
Enquanto o Supremo entendeu que o marco temporal não é válido, o Congresso aprovou uma lei para instituir a regra. Partidos políticos voltaram a acionar o Supremo contra a lei que contrariou seu entendimento e a questão ainda não teve um desfecho.