Na segunda-feira passada, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes retirou o sigilo da íntegra da gravação daquela conversa, feita pelo então diretor da Abin, o hoje deputado federal Alexandre Ramagem. Só a defesa de Bolsonaro havia solicitado acesso ao material. Mas, temendo que uma divulgação parcial ou até mesmo uma manipulação do áudio pudesse comprometer a devida compreensão do que havia sido discutido a portas fechadas, o ministro, em boa hora, decidiu garantir o acesso geral ao áudio e à sua transcrição, sem o que, nas palavras de Moraes, poderia haver “prejuízo à correta informação à sociedade”.
Os arquivos são claros. Todos os cidadãos puderam ler com seus próprios olhos e ouvir com seus próprios ouvidos o teor daquela conversa absolutamente antirrepublicana, para dizer o mínimo. Na presença de Ramagem, do então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, de Flávio e de duas advogadas do senador – um ambiente restrito e supostamente controlado, o que chega a ser irônico –, Bolsonaro se sentiu à vontade para dar vazão ao seu vezo patrimonialista, como se o fato de ter sido eleito presidente da República o autorizasse a agir como se fosse o dono do Estado brasileiro.
A julgar pelo conteúdo revelado da conversa, tamanha é a distorção de seu papel como chefe de Estado e de governo, além da própria ideia que Bolsonaro faz do Estado, que o então presidente nem sequer parece ter se dado conta de que potencialmente estava cometendo uma plêiade de crimes naquela ocasião. “É o caso de conversar com o chefe da Receita. O (José) Tostes”, orientou Bolsonaro às advogadas do filho, como se “conversar” com um servidor público a fim de levá-lo a agir no atendimento de interesses privados do mandatário fosse a coisa mais natural do mundo.
A gravação tornada pública revela de forma inequívoca tanto o desdém de Bolsonaro pelas obrigações que o alto cargo que ele ocupava lhe impunha como sua plena ciência de que o teor daquela conversa era possivelmente ilegal. Durante quase 1h10 de gravação, não foram poucos os momentos em que Bolsonaro tentou fazer parecer que não estava fazendo exatamente o que, de fato, fazia: mobilizar órgãos públicos como uma extensão da equipe de defesa jurídica de seu filho mais velho. “Ninguém está pedindo favor aqui”, “não estamos procurando favorecimento de ninguém”, disse o então presidente, enfatizando que “a gente nunca sabe se alguém está gravando alguma coisa”.
A desfaçatez é de estarrecer até os que estão minimamente familiarizados com o padrão de imoralidade do bolsonarismo. Não se pode perder de vista que o que estava sendo articulado na sala do presidente da República era um ataque à reputação dos servidores da Receita Federal responsáveis pelo relatório de inteligência financeira que evidenciou “movimentações atípicas” nas contas bancárias de Flávio Bolsonaro e do notório Fabrício Queiroz, espécie de faz-tudo do clã. Ademais, naquele horário, Bolsonaro deveria estar dedicado ao trabalho como chefe de governo, lembrando que, à época, a população brasileira estava angustiada pelas mortes causadas pela pandemia de covid-19.
As explicações dos implicados após a divulgação do teor da conversa seriam risíveis se não revelassem deboche e insulto à inteligência alheia. Espera-se que a PF leve a cabo essa investigação e que todas as responsabilidades sejam devidamente apuradas – tanto as de quem solicitou favores ilícitos como as de quem, eventualmente, os atendeu.
Comentário nosso
Só não viu quem não queria. Bolsonaro passou os quatro anos do seu governo utilizando de tudo em favor dos seus interesses. Mas não só dos seus interesses pessoais, como dos interesses de sua família e dos seus apaniguados. A maior demonstração de que o país estava em último lugar nas suas preocupações foi a maneira como ele se conduziu com relação à pandemia da COVID 19. Não lhe importava que se morresse aos milhares, desde que se achasse que ele tinha toda razão nas suas loucuras. (LGLM)