Parlamentares irritados afirmam que eles conhecem melhor as necessidades das populações locais, e sua participação na alocação dos recursos públicos é um instrumento democrático empregado em todo o mundo. É uma meia-verdade, incapaz de disfarçar as perversões por trás da dilapidação do Orçamento.
De fato, emendas existem em todo o mundo, e a Constituição as previu justamente para que os congressistas orientassem recursos às necessidades locais. Mas no Brasil seu volume cresceu a níveis exorbitantes. Um levantamento do Instituto Millenium mostrou que em 29 países da OCDE, um fórum das democracias ricas, os montantes na maioria são inferiores a 0,01% das despesas discricionárias e só em três eles superam 2%. No Brasil a dotação saltou de 4% em 2014 para 24% hoje.
Mais aberrante é a proliferação de modalidades e suas distorções. Até 2015, a execução de emendas individuais e de bancada dependia da disponibilidade de recursos. Então se estabeleceram cotas obrigatórias. Em 2019 foram criadas as “Transferências Especiais” (“emendas Pix” ou “cheque em branco”) que permitem repasses a Estados e municípios para que seus governantes gastem praticamente como bem entenderem. O maior retrocesso veio em 2020, quando a “Emenda do Relator” – que serviu aos “anões do Orçamento”, em 1993 – foi exumada e anabolizada para permitir que o governo distribuísse recursos a aliados sem qualquer transparência. O chamado “orçamento secreto” logrou a proeza de violar todos os princípios constitucionais da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – e não à toa foi declarado inconstitucional pelo STF. Ainda assim, os parlamentares, com a conivência do governo, têm buscado formas de maquiá-lo.
Emendas parlamentares deveriam preservar a qualidade do Orçamento, observar uma lógica coletiva e ser objeto de escrutínio popular. Mas o desmonte dos mecanismos de distribuição transparente, técnica e equitativa acarreta a degradação das políticas públicas, porque os recursos são pulverizados sem planejamento; pressões fiscais, porque são drenados das políticas setoriais dos ministérios; riscos de corrupção, porque não são fiscalizados; e distorções da competição democrática, porque irrigam os currais eleitorais dos parlamentares. São perversões flagrantes no caso das “emendas Pix”, mas em maior ou menor grau valem para as outras.
O Congresso reagiu à liminar cortando verbas do Judiciário, inflamando ameaças de impeachment e protestando contra o ativismo judicial. A invasão de competências por parte do STF é de fato um problema crônico e cada vez mais agudo. Mas não foi o caso desta vez. A Corte não está legislando nem interferindo nas prerrogativas do Legislativo de ingerência sobre o Orçamento. Está só exigindo que ela obedeça às exigências constitucionais. A resposta do Congresso, puramente retaliatória e nada propositiva, só revela o nível de degradação a que se chegou no trato do Orçamento.
Assim como o voto é a base da democracia, o Orçamento é a sua culminação. É através dele que os recursos do contribuinte são materializados em serviços para os cidadãos. A negligência dos representantes eleitos em promover reformas tem comprometido cada vez mais as despesas com custeio de servidores e benefícios previdenciários, enquanto a parcela cada vez mais comprimida dos gastos discricionários é pulverizada sem transparência. O Orçamento caminha para o pior dos dois mundos: gastos engessados e investimentos arbitrários. Arrumar a casa é não só uma exigência da realidade, mas da Constituição. Ao impor ao Legislativo um freio de arrumação, a Corte nada mais fez que cumprir o seu papel de guardiã da ordem constitucional.