Decisão de Moraes acena com pena altíssima em caso de condenação do detido, que lembrou sua lealdade ao ex-presidente; camaradas testemunharam a transformação do general após o seu desembarque na política
(Marcelo Godoy, no Estadão, em 16/12/2024)
A cena banal hoje parece um índice para demonstrar o ambiente que circundava o então presidente, moldando escolhas e comportamentos. A transformação que o desembarque no mundo da política causou no personagem crescido na caserna é uma das principais observações feitas por antigos camaradas que testemunharam a carreira do primeiro general de quatro estrelas preso em razão de uma investigação da Justiça comum desde a redemocratização.
“Cuidado que o general é muito rigoroso, extremamente soldado.” Ou ainda: “Não erre nada, desde o cerimonial.” Com frases assim, os generais costumavam advertir os subordinados que tivessem de lidar com Braga Netto. O homem ainda não havia se tornado o chefe da intervenção federal na Segurança Pública do Rio, um cargo que teve de aceitar em 2018 para não ter um outro general de quatro estrelas mandando em sua área.
Agora, todos se questionam: onde se perdeu o oficial que tinha uma carreira vitoriosa a ponto de ser abordado às 6 horas pelas batidas da Polícia Federal na porta de seu apartamento, em Copacabana? Duas palavras, segundo seus camaradas, podem ajudar a explicar essa trajetória: vaidade e ambição. Ele esqueceu que todos os rios vão para o mar; e, contudo, o mar não se enche.
Oficial de Cavalaria, Braga Netto, apesar da rigidez, era tido como alguém de convívio agradável, que fora beneficiado pelos relacionamentos que soube manter durante a carreira. Na sua turma, porém, outro cavalariano dispunha de prestígio maior: Geraldo Antônio Miotto, a quem coube o Comando Militar do Sul, a grande joia de sua Arma. Coube a Braga Netto o Comando Militar do Leste.
Quando se tornou interventor no Rio, Braga Netto teve de aprender a ouvir os políticos e os empresários de um estado em situação financeira desastrosa e sacudido por crimes, como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). “Eu mesmo não imaginava que ia ser o interventor”, disse em seu depoimento aos professores Celso Castro e Adriana Marques, no livro Forças Armadas na Segurança Pública.
Pôde contar na tarefa com a estrutura do Exército para fazer licitações e tentar estruturar a Segurança Pública do Estado. Tinha concepções distintas do então secretário da Segurança, general Richard Nunes, com quem teve de dividir as responsabilidades. Nunes tirou a farda ao ocupar seu cargo, Braga Netto a manteve.
Não imaginava o vulto que a ação teria. Em pouco tempo, personificou-a. E Bolsonaro, eleito presidente, achou no quatro estrelas recém-nomeado chefe do Estado-Maior do Exército a pessoa correta para cuidar de seu estado-maior civil, a Casa Civil da Presidência da República. O presidente via no general uma liderança capaz de repetir a experiência carioca no governo.
Nem um nem outro entendiam a natureza política do cargo, onde a autoridade não se exerce por meio da hierarquia e da disciplina. Os valores da caserna aos poucos foram cedendo espaço à ideia de que tudo se podia fazer. E acontecer. Como se o Palácio do Planalto não tivesse rampa, a qual se sobe, mas que também se pode descer.
Tudo o que se passou nos meses seguintes à festa junina começou a ser descoberto pela Polícia Federal depois da intentona bolsonarista de 8 de janeiro de 2023. Não só Braga Netto agia. O coronel Flávio Peregrino dedicava-se, após a eleição, a enviar dezenas de mensagens a generais da ativa pedindo ajuda para a manutenção dos acampamentos em frente aos quartéis. Também alvo da PF no sábado, o coronel era o principal assessor de Braga Netto.
Peregrino quis que o comando do Exército permitisse o estacionamento de caminhões em frente ao quartel-general da Força Terrestre, muito dos quais enviado à Brasília, após a eleição, pela “turma do agro”, a mesma que, segundo o tenente-coronel Mauro Cid, entregou a Braga Netto os R$ 100 mil necessário à Operação Punhal Verde e Amarelo, que neutralizaria o ministro Alexandre de Moraes e o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
Mesmo antes de os detalhes do plano do golpe serem conhecidos, a posição de Braga Netto entre seus pares já se havia deteriorado. Não apenas pela troca dos comandantes e do ministro da Defesa, em 2021, quando Bolsonaro o transformou em titular da Defesa, substituindo o general Fernando Azevedo e Silva, mas também quando, pouco depois, deixaram de punir o general Eduardo Pazuello, por subir no palanque do presidente. Ele não enxergava, então, o quanto se distanciara da tropa. Tudo sacrificado à vaidade. Vaidade das vaidades…
As mensagens dele ao ex-major Ailton Barros, um camarada considerado indigno do oficialato, foram o capítulo final na ruptura dos laços. Elas expuseram a deslealdade do general aos colegas ao chamar o então comandante do Exército, general Freire Gomes, de “cagão” por não aderir ao golpe e por acusar o comandante da Força Aérea, o brigadeiro Carlos Baptista Júnior, de “traidor da Pátria”.
As fases da investigação conduzida pela PF se sucederam em aproximações sucessivas… Até que o momento da prisão de Braga Netto já não causou alvoroço ou surpresa. O que todos se perguntam é como o general, que negava tudo até agora, vai se comportar diante da perspectiva de uma condenação pesada.
Alguns antigos camaradas enxergaram nas notas publicadas pela defesa do general um recado a quem parece deixá-lo sozinho na sala que deve ocupar na sede da 1.ª Divisão de Exército (1.ª DE), na Vila Militar, para onde Braga Netto foi levado preso. Nas horas seguintes à ação da PF, Bolsonaro se manifestou – seus filhos ficaram em silêncio – de forma tímida, questionando apenas o fundamento da decisão de Moraes. “Como obstruir uma investigação concluída?”, escreveu.
Os generais que conheceram e trabalharam com Braga Netto viram ali um recado. Braga Netto não aceitará ser abandonado, como o presidente é constantemente acusado de fazer com seus amigos e aliados. A palavra do general não parece ser fundamental, diante do contexto probatório em relação ao antigo chefe para condená-lo como beneficiário maior da trama golpista, mas ela pode ter um efeito devastador: levar a uma condenação unânime de Bolsonaro no STF.
O recado do general seria uma reação à espada sob a sua cabeça. Ela está na página 23 da decisão de Moraes sobre a prisão de Braga Netto. O ministro listou ali os crimes pelos quais ele é acusado. Começou dizendo que a Polícia Federal demonstrou “a presença dos requisitos necessários e suficientes para a decretação da prisão preventiva do investigado, como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal”.
Depois o magistrado afirmou que a PF “comprovou a materialidade e fortes indícios de autoria dos tipos penais de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito (CP, art. 359-L), de tentativa de golpe de Estado (CP, art. 359-M) e de organização criminosa (Lei 12.850/13, art. 2º), em concurso material de delitos (CP, art. 69) e apontando o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, em constante tentativa de embaraço às investigações”.
No caso de alguém como Braga Netto, as circunstâncias agravantes para cada um dos crimes de que é acusado devem elevar a pena bem acima do mínimo previsto para cada delito, podendo atingir até 30 anos de cadeia. Não se trata de uma condenação qualquer. Sem a perspectiva de anistia, ainda mais em caso de reeleição de Lula em 2026, o destino parece reservar muitos anos na sede da 1ª DE para o general, que, para os colegas, não se perdeu em razão da ideologia, mas pela soberba. De modo que nada há de novo sob o sol. Uma geração vai e outra vem, mas a terra sempre permanece…