O crime se organiza cada vez mais. O Estado precisa se organizar também. Em boa hora, o Ministério da Justiça elabora uma proposta com o condão de desarticular as facções criminosas

Não há indicador que não evidencie uma metástase que avança por todos os órgãos do corpo nacional. O crime organizado se capilariza na economia legal; se infiltra na política; controla territórios, atuando como um Estado paralelo; e amplia conexões com máfias estrangeiras, resultando num aumento quantitativo dos crimes e na diversificação qualitativa de seus negócios.
Mas o Estado não acompanhou essa sofisticação: os órgãos de segurança não estão integrados; a tecnologia e os sistemas de inteligência estão defasados; as forças de segurança são subfinanciadas; o sistema prisional é deficiente; a legislação é insuficiente; o sistema judicial é ineficaz.
A experiência internacional oferece um cardápio de boas práticas para subsidiar o poder público brasileiro.
Desde os anos 1970, os EUA reprimiram substantivamente a articulação do crime organizado, especialmente pelos instrumentos fornecidos pela Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsão (Rico). Focando mais em padrões de comportamento criminoso do que em crimes individuais, a lei dá latitude aos agentes da Justiça, permitindo que eles processem diversos indivíduos como membros de uma “família” criminosa, se houver evidência de participação em ao menos duas atividades tipicamente associadas ao crime organizado, como extorsão, fraude, tráfico, lavagem de dinheiro ou suborno. A lei autoriza penas pesadas e ampla capacidade de confisco ao Estado.
O arcabouço criado pela Itália desde os anos 1990 é um dos que mais se aproximam do “padrão ouro” de combate ao crime organizado. Escorado em um tripé – compromisso político, leis adequadas e engajamento da sociedade civil –, o poder público italiano criou uma série de medidas preventivas e repressivas, como uma legislação para facilitar e acelerar inquéritos e procedimentos judiciais contra chefes mafiosos; penas mais duras e regimes penitenciários especiais; institutos de colaboração premiada; confisco preventivo e expropriação em favor da sociedade; e políticas holísticas para reprimir a infiltração do crime organizado, como dissolução de órgãos locais controlados pelas máfias, melhorias na segurança e desenvolvimento econômico de comunidades carentes e sistemas de transparência, prestação de contas e responsabilização voltados a colaboradores do colarinho branco no empresariado e na administração pública.
Crucial para a efetividade desse arcabouço foi a instauração de instituições aparelhadas para enfrentar organizações multifacetadas e sistematicamente capazes de transcender delitos, investigações e processos penais individuais. Notadamente, a Direzione Investigativa Antimafia (DIA) promove esforços de inteligência focados mais em empreendimentos sistêmicos do que em crimes individuais, atuando ao mesmo tempo em investigações no plano internacional. A DIA tem autonomia gerencial e financeira, é composta por membros das diversas forças de segurança e opera em campos como gestão de bancos de dados, monitoramento de licitações e obras públicas e transações suspeitas. Seu diretor tem a prerrogativa de propor aos tribunais medidas de prevenção, seja em caráter pessoal (vigilância especial), seja em caráter patrimonial (sequestro de bens). Entre 1992 e 2018, a DIA sequestrou mais de € 17 bilhões em ativos, confiscou mais de € 10 bilhões e prendeu mais de 10 mil pessoas acusadas de associação mafiosa.
No Brasil, o crime se organiza cada vez mais e melhor. É hora de o Estado se organizar também.