
Não raro, magistrados trabalhistas afirmam que atrás de um contrato civil ou comercial de prestação de serviço há uma fraude contratual trabalhista. Reconhecem, então, o vínculo de emprego, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em razão da subordinação, quando identificam, por exemplo, a exigência de cumprimento de jornada.
A controvérsia sempre existiu, mas ganhou contornos superlativos após o STF declarar, acertadamente, a constitucionalidade da terceirização da atividade-fim, válida desde a reforma trabalhista. O Supremo editou duas teses, de modo a enquadrar a Justiça do Trabalho, que, como se sabe, tende a afrontar as regras trabalhistas aprovadas durante o governo de Michel Temer.
Numa das teses, ficou estabelecido que “é lícita a terceirização de toda e qualquer atividade” e que a contratante se responsabiliza subsidiariamente por violações de normas trabalhistas e previdenciárias. Na outra, o STF afirmou que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”. Com esses dois precedentes, esperava-se que as divergências fossem superadas. Foi quando surgiu a confusão em torno da “pejotização”.
Advogados de empresas condenadas por fraude contratual trabalhista passaram a alegar que a “pejotização” é lícita por causa da terceirização irrestrita. Em reclamações, instrumentos pelos quais se queixa de descumprimento de precedentes, alguns ministros do Supremo aderiram a esse argumento. O STF parece confundir os conceitos. A terceirização exige três requisitos: a empresa contratante, a empresa terceirizada e o empregado dessa empresa, que geralmente tem carteira assinada. Já na “pejotização”, o contrato é entre duas partes: o “pejotizado”, sem qualquer direito assegurado, e a empresa.
Como nunca discutiu a “pejotização” em plenário, o STF decidiu julgar um recurso extraordinário com repercussão geral sobre o tema. No caso concreto, um corretor de seguros contestou uma decisão da Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que negou, com base nos precedentes sobre a terceirização, o seu vínculo de emprego. Relator do caso, Gilmar fez bem ao impedir “a multiplicação de decisões divergentes sobre a matéria” e privilegiar “o princípio da segurança jurídica”.
O STF terá de decidir sobre “a competência e o ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços” e “a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”. Eis o perigo.
O STF poderá declarar a Justiça do Trabalho incompetente para tratar desse tema, transferindo-o à Justiça Comum – menos acessível aos trabalhadores comuns. Em que pese o fato de que a Justiça do Trabalho frequentemente extrapole em suas decisões e abuse do ativismo, não foram revogados os artigos 9.º da CLT, que declara nulo o contrato que frauda a lei trabalhista, nem o 114 da Constituição, que dá a esse ramo especializado do Judiciário a competência para julgar “as ações oriundas da relação do trabalho”.
Se o STF liberar uma “pejotização” irrestrita, ignorando vínculos de trabalho, é possível que muitos celetistas se vejam pressionados a aderir a esse tipo de contrato. O Supremo poderá dessa forma, de maneira generalizada, prejudicar direitos trabalhistas, como férias e décimo terceiro salário, previstos no artigo 7.º da Constituição, e também direitos previdenciários. Sem contar o risco à Previdência Social, já imensamente deficitária, pois haveria diminuição drástica de contribuintes.
A redução dos encargos trabalhistas é uma necessidade para o País, mas isso não pode ser feito à custa da precarização total das relações de trabalho, ao arrepio da Constituição. Diante disso, espera-se que o Supremo tenha juízo com a decisão que venha a tomar.