A saudosa bagaceira

By | 27/09/2014 11:59 pm

(José Augusto Longo, no Patos Online)

Escrever sobre a famosa “bagaceira” é dar uma prega no tempo, voltar ao romantismo de uma época; é voltar aos inesquecíveis dias e noitadas boêmias, ocasião em que a elite rica e preconceituosa se misturava com  a pobreza, somente olhada no dia-a-dia, quando dela necessitava seus serviços; a “bagaceira” era para a Festa de Setembro, como se dela fosse uma dependência, o “esquenta”, para os esperados leilões das barracas centrais, onde os mais abonados, já “turbinados” e sentindo-se mais “ricos”, pelo efeito da cana, arrematavam, sem pestanejar, as prendas postas à disposição nos pregões.

Era na “bagaceira” onde se fazia, às claras, tudo aquilo que durante o resto do ano era para muitos, praticada por debaixo do pano, às escondidas. Lá se encontravam amigos para o bate-papo, para se encher a cara de cachaça, para pegar tira-gostos os mais variados, tais como tripa assada, bode torrado, buchada, fava gostosa com toicinho e mocotó de porco, rolinha, preá, peba, arribaçã e todo tipo de ave caçada por especialistas e que eram vendidas à freguesia ansiosa por saborear com prazer tudo aquilo que era cozido em panelas mal lavadas e cheias de graxa por todos os lados. Mas, como era na “bagaceira” e como por lá tudo era prazer, se devorava com avidez, como se todos estivessem no mais limpo e prestigioso restaurante, servidos por chiques garçons.

A “bagaceira” propiciava encontros que muitas vezes tornavam eternas as amizades lá iniciadas. Foi lá, por exemplo, que conheci Geraldo Araújo, o “mago véi”, ainda muito jovem como eu e que mais tarde seria meu colega na antiga e querida Rádio Espinharas, transformando-se, depois em importante funcionário do Banco do Brasil; foi lá, que mantive o primeiro contato com o “gordo” Eronides, saudoso amigo, infelizmente já falecido;  foi lá, na velha e querida “bagaceira” que fiz dezenas de outras boas e inesquecíveis parcerias que me acompanhavam em farras homéricas, vida a fora, mesmo depois que a festa acabava.

A “bagaceira” era democrática, nela não havia o mínimo preconceito. Suas barracas eram todas de papelão ou palhas de coco, os copos, os pratos e os talheres, eram lavados numa única bacia com água turva, à vista do freguês, sem nenhum acanhamento. Se espalhavam pelas ruas João da Mata e Ruy Barbosa, se mais não me lembro – na dúvida procurar Romildo Sousa ou Damião Lucena – e, por dez ou quinze dias, gente como o doutor Osmam, seu irmão Bá, Nego Coco de dona Nenê, Júlio Paulo, Miguel Nobre, Chico Mendonça da famosa Preácas, médicos, profissionais liberais, bancários, mecânicos, fazendeiros, comerciantes bem sucedidos, funcionários dos Correios, do DNER e tantas outras figuras importantes da nossa sociedade da época. A maioria, depois da festa, se preservava em seu habitat social, somente tirando a “mascara”, no setembro seguinte.

A democracia da “bagaceira” dava-nos a oportunidade de conviver no  centro da cidade e em plena luz do sol,  com as “meninas” lá da zona, com as quais só nos encontrávamos às escondidas, depois de transpormos a linha do trem, após o anoitecer. Hoje, segundo se comenta, não é mais necessário transpor a linha, o caminho encurtou. A modernidade que acabou com a “bagaceira”, também sepultou a zona e, como não tem mais zona nem “meninas” disponíveis lá por baixo, a rapaziada se vira mesmo aqui por cima, não mais às escondidas, mas às claras, ante a indiferença de todos. A modernidade que exterminou a “bagaceira” e a zona, por puro egoísmo, hoje, sem nenhum pudor, facilita as coisas, como se o pecado de ontem, tivesse morrido junto com a tradição também sepultada.

Na verdade, na “bagaceira” dos saudosistas como eu, não existia droga, não existia maldade. O que existia mesmo era uma inocente comunhão, uma convivência pacífica, poucas vezes quebrada por algum desentendimento, depressa abafado pelos convivas, impedindo, na maioria das vezes, a intervenção de policiais que, quando por lá apareciam, mesmo em serviço, aproveitavam para, discretamente, tomar umas lapadas com as gostosas caças que abundavam pelos nossos sertões e que hoje são vigiadas de perto, pelo moderno IBAMA, do capitão Hugo.

Era assim a “bagaceira”. Reduto de homens que se diziam sérios e de mulheres nem tanto. Um ambiente onde se bebia, comia e, feliz, se ouvia músicas de Nelson, de Silvinho, de Waldick, Bievenido Granda e outras até de gosto duvidoso, mas que eram aceitas por quem lá estava. A “bagaceira” era para nós, seus frequentadores, como o hoje também proibido lança perfume, de velhos carnavais, que depois de usado, seu cheiro gostoso passava dias incrustrado em nossos lenços.

A “bagaceira”, detestada e abominada pelas damas da sociedade que só dançavam nas chiques manhãs de domingo da ACIAP e desfilavam seus belos e caros vestidos em frente à Igreja Matriz, teve fim, mas perdura até hoje, na lembrança de seus velhos e saudosos frequentadores, aqueles que, venturosamente, ainda estão vivos.

Mas, paciência, Patos é assim mesmo. Os velhos costumes são como os seus monumentos históricos: engolidos por um progresso estúpido, que não costuma usar o retrovisor, quando quer avançar, atropelando-os, sem dó nem piedade, enterrando a sua própria história.

(josaugusto09@gmaiçl.com)

Comentário do programa – Alguns saudosistas bem que tentamos reviver a “bagaceira” estimulando algumas destas tentativas feitas na rua João da Mata, próximo aonde ficava a usina de Araújo Rique, onde chegou a funcionar até uns cinco anos atrás numa barraca solitária, sob a proteção do meu querido amigo Sargento Mariano. Lá ainda tomamos umas “canas” na companhia de um parceiro de trabalho, apreciador de umas e de outras. E pagamos uma “latinha” para um “pingunço” que nos olhava com olhos compridos. Mas as gerações saudosas da “bagaceira” estão se extinguindo, todos com mais de sessenta anos, e só nos resta a saudade dos tempos em que saíamos das aulas noturnas do Colégio Estadual para curtir um pouco da festa, mesmo “lisos” de pegar verniz. Hoje sem a atração da “bagaceira”, não passei nem perto da festa, apesar de ter passado as duas semanas da Festa de Setembro, trabalhando na região. (LGLM)

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Category: Opinião

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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