(Helio Gurovitz, colunista do G1)
O pedido de prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feito na quinta-feira por procuradores de São Paulo que investigam o caso do triplex no Guarujá atribuído a Lula, terá – assim como as ações da Operação Lava Jato – consequências jurídicas e políticas. Embora as duas investidas contra Lula se assemelhem no aspecto político, juridicamente são bastante distintas.
Politicamente, o pedido do Ministério Público (MP) paulista contribui para acirrar ainda mais os ânimos da nação, numa situação já tensa e conflagrada. Lula aproveitou seu depoimento sob coerção na Lava Jato para conclamar a militância do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos movimentos sociais aliados a protestar contra o que considera uma perseguição. Fez o que sabe fazer tão bem: pôs-se no papel de vítima. Agora, é provável que volte ao discurso de combate à tal “conspiração” entre a Justiça, a “mídia” e as “elites”.
Quanto barulho o PT e seus aliados farão na prática? Qual será o resultado concreto, em termos de distúrbios à ordem pública, da mobilização em defesa de Lula? Tudo isso ainda são incógnitas. Várias manifestações petistas convocadas para o próximo domingo foram canceladas ontem, sob a alegação de evitar confrontos com manifestantes contrários a Lula. É desnecessário dizer que, numa democracia, ambos os lados têm pleno direito de se manifestar, desde que de forma pacífica.
Não apenas o PT, mas mesmo líderes da oposição julgaram excessivo o pedido de prisão de Lula. Numa reunião realizada ontem, os petistas repetiram o que dizem desde que o caso veio à tona. Acusaram os promotores de ter pré-julgado Lula, sem nem mesmo ouvir sua defesa. É um argumento especioso e circular, uma vez que Lula não compareceu para prestar depoimento quando intimado pelo MP paulista alegando perseguição. Tal fato, muito provavelmente, contribuiu para levar o juiz Sérgio Moro a decidir usar a coerção para interrogá-lo na Lava Jato.
Juridicamente, o caso do triplex no Guarujá representa uma intersecção entre as investigações do MP de São Paulo e da Lava Jato. Os procuradores paulistas tentam ressarcir as vítimas logradas no escândalo da Bancoop, a cooperativa do Sindicato dos Bancários responsável por vários empreendimentos imobiliários fraudulentos. A Lava Jato investiga como um conluio entre empreiteiros e políticos desviou dinheiro da Petrobras por meio de contratos fraudulentos.
A intersecção entre os dois casos está na empreiteira OAS e num de seus donos, o empreiteiro Léo Pinheiro, já condenado na Lava Jato. Foi a OAS que adquiriu, da massa falida da Bancoop, o condomínio Mar Cantábrico, e o rebatizou como Solaris. É nesse condomínio que fica o triplex atribuído a Lula. A Lava Jato ainda investiga o caso e fala apenas suspeitas e indícios contra ele na sua relação com várias empreiteiras, não apenas a OAS
Os procuradores paulistas, em contrapartida, denunciaram Lula ontem por lavagem de dinheiro e falsidade ideológica, sob a acusação de ter omitido a propriedade do apartamento em sua declaração à Receita Federal. “O ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva tem sua conduta implicada no delito de lavagem de dinheiro à medida em que (sic) deliberadamente desconsiderou a origem do dinheiro empregado no condomínio Solaris do qual lhe resultou um triplex”, escrevem na denúncia. “Não por outra razão, já antevendo a possibilidade de produzir lavagem de dinheiro dolosamente, consignou falsidade em seu imposto de renda, declarando outro apartamento que não lhe pertencia.”
Na denúncia, os procuradores também pedem a prisão preventiva de Lula, argumentando que ele oferece risco à ordem pública. Entre todas as possibilidades de detenção, a prisão preventiva é a mais extrema. Como medida de força, vai além da “condução coercitiva”, usada na Lava Jato para interrogá-lo, e da “prisão provisória”, em geral usada por um prazo determinado, nas situações em que o acusado pode pôr em risco as investigações.
Duas dúvidas emanam da denúncia. Primeira: em que medida a superposição entre a Lava Jato e o Caso Bancoop pode levar os réus, entre eles Lula, a ser julgados duas vezes pelo mesmo crime? Segunda, em que medida se justifica o pedido de prisão preventiva?
Quanto à primeira questão, não há muita dúvida. Em algum momento, o Judiciário deverá unificar as acusações que dizem respeito ao triplex no Guarujá. Nesse aspecto, o trabalho dos procuradores está mais avançado em São Paulo que em Curitiba. A denúncia de ontem traz inúmeros detalhes, dezenas de depoimentos de testemunhas, além de provas e documentos, como fotos e notas fiscais. Ela comprova que a OAS promoveu no triplex uma ampla reforma, que se estendeu até 2014, a um custo estimado em R$ 777 mil.
Ela desmonta a versão da defesa, segundo a qual Lula e sua mulher tinha apenas uma “participação” ou uma “opção de compra”, depois desistiram da propriedade do imóvel –os cooperados poderiam ter feito isso até 2010. “Enquanto milhares de famílias eram literalmente ameaçadas com cobranças extracontratuais indevidas, que geravam um desequilíbrio financeiro gritante, (…) os denunciados (…) conseguiram transformar a ‘participação’ declarada perante a Justiça Eleitoral, em seu segundo mandato, num aprazível triplex com churrasqueira, elevador privativo e piscina, à beira da não menos deleitável praia das Astúrias, em Guarujá”, escreveram os procuradores.
A resposta à segunda pergunta é mais complexa. A prisão de um ex-presidente da República não é um assunto trivial. Embora Lula não esteja acima da lei, os argumentos para embasar o risco à ordem pública precisam ser, num caso desses, absolutamente incontestáveis – até mesmo para garantir a solidez da decisão diante da inevitável repercussão política. É nesse ponto que a denúncia está sujeita a críticas.
Os procuradores argumentam que Lula atentou contra a ordem pública ao desrespeitar a Justiça em declarações públicas; ao manobrar politicamente para barrar as investigações (tanto no caso da Bancoop quanto na Lava Jato); ao se recusar a depôr quando convocado, ao inflamar a população na entrevista coletiva posterior a seu depoimento sob coerção na Lava Jato; e, finalmente, ao soltar um palavrão num ataque contra a Justiça flagrado num vídeo gravado pela deputada Jandira Feghali.
Para Lula depôr, não é necessário mantê-lo preso; bastaria uma nova condução coercitiva. Outras das acusações podem configurar falta de caráter ou de educação – mas não crime. Sobre as manobras políticas, não há provas na denúncia, além de um pedido feito ao Conselho Nacional do Ministério Público, já julgado em desfavor de Lula. De todas as alegações, a mais séria diz respeito à conclamação da militância. Mesmo assim, trata-se de um julgamento subjetivo. Onde uns enxergarão incitação à violência, outros verão o livre direito de manifestação.
Nesse aspecto, portanto, a denúncia se revela frágil. Naturalmente, uma vez julgado culpado, Lula deverá ser preso. As provas apresentadas pelos procuradores levam a crer que tal cenário é extremamente provável nesse caso. Mas prendê-lo preventivamente é acelerar um processo que precisa ser conduzido com cautela e serenidade. Não apenas em nome daquilo que Justiça deve a todo cidadão. Mas sobretudo porque as consequências políticas de um erro de condução podem ser nefastas para todo o país.