(Ruth de Aquino, colunista da revista Época)
A maior epidemia no Brasil não é a da chikungunya. A carnificina de 56 detentos, mutilados e decapitados no presídio de Manaus, filmada sem vergonha ou medo, desnuda uma endemia histórica e nacional: a mediocridade de nossos quadros públicos, a omissão federal, estadual e municipal na segurança, o jogo de empurra venal que faz vítimas dentro e fora das cadeias e as parcerias suspeitas entre a política e o narcotráfico, que envolvem dinheiro, poder e empresas.
Vivemos a terceirização da culpa. É uma endemia, não uma epidemia, por ser crônica. Mata a credibilidade de instituições e autoridades. Visa diluir a responsabilidade e confundir a opinião pública. Não chegaremos a lugar nenhum se não houver mea-culpa no cartório. Vemos o desespero para encontrar um bode expiatório, seja na matança de Manaus, no descalabro do Maracanã ou no crime ambiental de Mariana. Planos e programas redigidos às pressas, com medidas paliativas e espetaculosas, não exterminarão o vírus. É preciso enfrentar algumas verdades duras.
Não temos um ministro da Justiça à altura dos desafios da segurança pública. Por quanto tempo ainda ouviremos as bobagens de Alexandre de Moraes, o mesmo que defende “a erradicação da maconha”? No dia 18 de outubro, Moraes chamou de “mera bravata” a briga entre facções de detentos, ao comentar mortes em presídios do Norte. Disse não enxergar coordenação entre facções de vários estados. Moraes não deve enxergar um palmo diante do nariz. Para o ministro, a matança de Manaus foi “uma clara falha” da empresa Umanizzare, contratada pelo governo do Amazonas para administrar o presídio.
A aparição do presidente Michel Temer, depois de silêncio ensurdecedor, também foi desastrosa. Chamar de “acidente pavoroso” o massacre anunciado de Manaus não tem justificativa. Era normal que Dilma Rousseff, conhecida por seus tropeços na língua, cometesse uma gafe após a outra. Mas quem adora uma mesóclise e uma mesura precisa estar ciente de que não se pode chamar de acidente ou fatalidade o que aconteceu no Amazonas.
Todos os alertas já tinham sido emitidos em relatórios da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Havia um plano de extermínio. Havia mensagens. A facção FDN (Família do Norte) planejava torturar e matar os presos da facção rival PCC (Primeiro Comando da Capital). Era investigado um suposto acordo entre o governador do Amazonas, José Melo, e a FDN. Já se sabia da ligação entre a FDN e o Comando Vermelho (CV) do Rio de Janeiro.
Pavorosa mesmo foi a omissão do governo federal e do governo estadual. O descaso com as condições carcerárias medievais não começou com o mandato de Temer – mas um presidente precisa saber o que falar à nação nessas horas dramáticas, para não parecer perdido. A emenda foi pior que o soneto.
Temer, a exemplo de Moraes, colocou a culpa no mordomo, a Umanizzare. Disse que “a responsabilidade direta e imediata” era da empresa. Não cola. Numa parceria público-privada para gerir um presídio, é evidente que a segurança dos presos e a entrada de armas de fogo são responsabilidade do Estado. Os presos estão sob custódia do Estado. Como colocar vida e morte nas mãos de uma empresa privada que ganha por preso, que subcontrata empresas do mesmo dono e é dona de concessões para administrar oito complexos prisionais no Amazonas e no Tocantins?
A maioria da população não sente a menor empatia pelos presos. Quando o governador José Melo diz que “não havia nenhum santo” na pilha de mortos, mas sim “estupradores e matadores”, sabe que fala em nome de quem não sente pena de bandido e não acredita em ressocialização. Muitos não analisam o quadro geral. Há presos “provisórios”, sem julgamento, nas cadeias. Há presos que já cumpriram sua pena, esquecidos. Há inocentes e ladrões de galinha junto a homicidas. E, fora dos presídios, também está difícil encontrar santo, não é mesmo, senhores ministros, governadores, prefeitos, deputados, senadores?
De que adianta construir uma rede de presídios que só fará cócegas no déficit de 250 mil vagas e elevará ainda mais o custo do preso? Uma das informações que mais indignaram o cidadão honesto nesse “acidente pavoroso” foi saber que o governo do Amazonas paga por mês à Umanizzare R$ 4.709,78 por preso – enquanto o salário mínimo é de R$ 937. Isso está acima da compreensão popular.
Outro dado que não comove a população, por mais terrível para os padrões internacionais, é que uma pessoa é assassinada por dia em prisões do país. Em 2015, foram assassinadas 58.492 pessoas no Brasil. A imensa maioria fora dos presídios. É macabro. E não vejo no Ministério da Justiça ou no Planalto alguém com capacidade e estratégia para aglutinar a sociedade, repensar a fracassada política contra drogas e amenizar nossa guerra civil.