(Ruth de Aquino, colunista da revista Época)
Curtos, longos, pequenos, enrolados. São assim os rabos dos cachorros. Quando o rabo está alto, é porque o cachorro está alerta ou consciente de algo. Quando esconde o rabo, está na defensiva. Quando abana o rabo, não é só sinal de amabilidade, pode ser nervosismo antes de morder. Há humanos que cortam o rabo de seus cachorros. E há humanos com o rabo preso. Conhecemos muitos nos Três Poderes.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes insinuou que não passam de “rabos de cachorro” os juízes federais que ousam desafiá-lo. O juiz Marcelo Bretas mandou prender o “rei do ônibus” no Rio de Janeiro, Jacob Barata, acusado de tentar fugir para Portugal com passagem só de ida e documento sigiloso da Lava Jato. Barata foi denunciado por envolvimento em esquema de propina no governo Sérgio Cabral. Gilmar mandou soltar. Bretas mandou prender novamente. Gilmar mandou soltar novamente. E achou a atitude de Bretas “atípica”.
“Em geral”, disse Gilmar, “o rabo não abana o cachorro, é o cachorro que abana o rabo.” Vale a pena escutar de novo o ministro, mesmo sabendo que é isso que ele quer. Suas pausas teatrais não são hesitações, elas se destinam a reforçar a mensagem de superioridade. “O. Rabo. Não. Abana. O cachorro.”
“Em geral”, os juízes e a sociedade civil acharam a declaração de Gilmar ofensiva e vulgar, imprópria de um juiz da Suprema Corte. Mas não a acharam “atípica”. Porque o Brasil conhece de trás pra frente sua arrogância, sua língua ferina e a falta total de comedimento nas relações com seus pares e juízes que estejam abaixo na hierarquia. O Brasil também conhece sua vocação de soltador geral da República. Ele pode ser vilão para você, mas é o herói dos políticos e empresários acusados de corrupção.
Gilmar não é só bonzinho com presos de colarinho branco. Mandou libertar em 2009 o médico estuprador Roger Abdelmassih, que estava preso havia quatro meses. Solto com habeas corpus de Gilmar, Abdelmassih fugiu, foi condenado e continuou foragido até 2014, quando foi encontrado no Paraguai. As mulheres têm mais um motivo para não gostar do ministro.
No mundo virtual, centenas de milhares de brasileiros pedem em abaixo-assinados a saída de Gilmar Mendes do STF. É uma rara unanimidade em nosso país polarizado. O procurador-geral, Rodrigo Janot, pediu ao STF que Gilmar seja impedido de julgar o habeas corpus de Jacob Barata. Gilmar foi padrinho de casamento da filha de Barata. O noivo é sobrinho da mulher do ministro. O filho de Barata é sócio do cunhado do ministro. A mulher de Gilmar, a advogada Guiomar, trabalha em escritório que representa os empresários de transporte. É tanto compadrio nisto que a gente precisa ler de novo. Mas Gilmar não enxerga aí “nenhuma suspeição” contra ele.
Há ainda as relações “semipresidencialistas” do ministro do STF com Michel Temer. Esse é o típico Gilmar palaciano, que absolve a chapa Dilma-Temer das acusações de caixa dois na campanha eleitoral de 2014. Foi por excesso de provas que Gilmar ajudou a livrar Temer da cassação. E agora sempre acha tempo para se encontrar com Temer fora da agenda oficial e inspirar o discurso do atual presidente. Ter um juiz do Supremo defendendo uma reforma política que ajude a “blindar o Estado” em crises de governo, dias depois de encontrar Temer, não faz bem à credibilidade do Judiciário.
O silêncio da presidente do Supremo, Cármen Lúcia, não ajuda a preservar o STF. Só se justifica se for uma estratégia mineira para deixar o clamor assentar e se impor na hora certa. Se Cármen acha mesmo que “cala boca já morreu”, se é rápida no gatilho ao reagir a Renan Calheiros e condenar “juizeco” como adjetivo depreciativo, alguma opinião ela deve ter sobre o destempero de Gilmar Mendes, que chama os procuradores da Lava Jato de “trêfegos e barulhentos”.
Sabemos que Cármen é a favor do direito de Gilmar de opinar como manda sua consciência. Desde que, claro, ele não seja suspeito para julgar um caso. Não pode se comportar como o rei da cocada branca, reagindo com tabefes verbais a uma contestação. Não é positiva para o país a disputa ríspida entre Gilmar e o Ministério Público.
Gilmar maculou o decoro do STF. Cármen não gosta de ser pressionada, ninguém gosta. Mas precisa se posicionar com clareza, levando o caso ao plenário. Gilmar deve ou não ser suspenso do caso de Jacob Barata? É isento ou não é isento? Gilmar pode ou não tratar com menosprezo decisões de juízes federais e procuradores? Sabemos como um jogo de futebol degringola quando o árbitro é omisso e tíbio diante de abusos, provocações e ofensas no campo.
O Brasil não quer um STF com o rabo entre as pernas. Ou, pior ainda, sem rabo. É muito surreal para ser verdade.
Comentário do programa – Depois de um Congresso avacalhado, um presidente com processo pendente, vem um Judiciário que se deixa avacalhar. Chegamos realmente ao “fundo do poço”. Colocaram, uns trinta anos atrás, a expressão na boca de Charles de Gaulle (“O Brasil não é um país sério”) Mas nunca o conceito foi tão atual. (LGLM)