(Ruth de Aquino, colunista da revista Época)
Que me perdoe Ruth de Aquino mas vou traduzir o título de sua matéria por uma expressão mais nossa: “Os sujos falando dos mal lavados”.
A palavra da moda entre políticos (“ilações”) não pode ter mais valor e impacto que a realidade. Enquanto o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, ameaça interpelar judicialmente o ministro da Justiça, Torquato Jardim, por ter falado verdades incômodas sem apresentar provas, o descomando da segurança mantém como refém uma cidade, um estado e um país.
Vítor Gabriel tinha 3 anos e brincava com os irmãos, na sala de casa, na comunidade Buraco Quente, na Baixada Fluminense. O pai ouviu um estrondo. Viu o filho caído com sangue. O médico da ambulância percebeu alguma coisa dentro da cabeça do menino. No hospital, enxergou-se uma bala no crânio, que tinha atravessado o telhado. Vítor sonhava em ir para a escola. Vítor morreu. Os pais doaram seus órgãos.
“Quero fazer um apelo para que as pessoas parem com esse negócio de armamento, de atirar para o alto à toa. A bala tem um lugar para cair. Caiu na cabeça de meu filho, pode cair na cabeça de outras pessoas”, disse o pai, Anderson Neves de Oliveira, de 56 anos.
Tanto o ministro Torquato quanto o governador Pezão são responsáveis indiretos pelas balas perdidas que voltaram a aterrorizar o Rio de Janeiro, após muitos anos de trégua aparente. Não apertaram o gatilho, mas, em vez de ficar no bate-boca, deveriam se articular e agir. Quem sabe Vítor estaria vivo e iria à escola.
Em qualquer país sério, essa família poderia ganhar uma polpuda indenização do governador do Rio e do ministro da Justiça. Na paz de casa, brincando, um menino não pode ser morto por um projétil. Isso só acontece quando há omissão em todos os níveis de governo e quando há promiscuidade entre bandidos e autoridades. Vítor não é um caso isolado. Crianças e adultos voltaram a ser vítimas de “balas perdidas” nos mais diversos cenários do cotidiano.
A TV Globo flagrou homens armados com fuzis de guerra AK-47 na manhã de quinta-feira, num baile funk na Vila do João, no complexo de favelas conhecido como Maré, na Zona Norte do Rio. Os homens dançavam com as armas, junto com crianças, ao lado de uma escola municipal e de um campinho de futebol. Uma arma tinha mira telescópica. Um dos homens filmados é chefe do bando que invadiu uma clínica para sequestrar um médico e tratar um traficante ferido.
O destino trágico de Vítor e os fuzis ostentados em bailes nas favelas fazem parte do mesmo quadro. Não são novidade. Durante um bom tempo, com a política das UPPs, o Rio parecia ter limitado o tráfico a sua atividade-fim: vender drogas, em vez de controlar os serviços nas favelas e disputar territórios com tiroteios diários.
Voltamos a enfrentar uma epidemia de crimes – e não só no Rio. O número de assassinatos no Brasil chegou a 61.619 em 2016, média de sete mortos por hora. As maiores taxas são no Nordeste. Isso mostra que tanto o governo federal quanto o estadual são culpados, até prova em contrário. Um é roto. O outro é esfarrapado.
Não são as declarações do ministro Torquato que me chocam. O que ele falou? “Os comandantes de batalhões são sócios do crime organizado no Rio.” “O comando da PM decorre de acerto com deputado estadual e o crime organizado.” “Com o atual governo do Rio, não tem solução.”
Há muita gente que assinaria embaixo do que Torquato disse. Fale mais, Torquato! Vá fundo. Prove o que diz. Afinal, o ministro tem a Polícia Federal nas mãos. Diga como os vazamentos determinam o fracasso de operações da Força Nacional contra traficantes perigosos, que não aparecem no dia D para jogar bola.
E Pezão, nos faça um favor. Em vez de se indignar como se fosse uma donzela, diga o que aconteceu com os 93 policiais do batalhão de São Gonçalo presos neste ano por associação com o tráfico. Explique por que escolheu como novo corregedor da PM o comandante de uma tropa de choque sob investigação por abusos, invasões, espancamentos e roubos na Rocinha.
Se tanto Torquato quanto Pezão olhassem mais para seu próprio umbigo, veriam que ambos ajudaram a disparar a arma que matou o menino Vítor. A segurança pública nunca recebeu nem de Brasília nem dos estados a atenção e o investimento merecidos. É inaceitável a violência no campo e em outras regiões. A promiscuidade entre bandidagem e polícia não é privilégio do Rio.
As ilações de Torquato só não podem servir para jogar cortina de fumaça sobre a banda podre da política. Estamos fartos de saber que o crime não se restringe à polícia. Vereadores e deputados acusados de corrupção estão sendo libertados da cadeia com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal e o precedente criado pelo resgate de Aécio Neves. São rotos, esfarrapados. E candidatos.