A antirreforma política
O Congresso, especialmente a Câmara dos Deputados, tem produzido nos últimos meses verdadeiros desastres em matéria eleitoral
Desde os anos 90 do século passado, fala-se da necessidade de uma profunda reforma política, que melhore a qualidade da representação e a funcionalidade do sistema político. O tema é quase um lugar-comum. Não há quem considere o atual sistema, com mais de 30 partidos, adequado ou mesmo razoável.
Essa profunda reforma política ainda não veio. De toda forma – e aqui está o ponto importante –, nos últimos anos foram realizadas significativas melhorias no sistema político.
A Emenda Constitucional (EC) 97/2017 proibiu as coligações partidárias em eleições proporcionais, que distorcem a vontade do eleitor, fazendo com que o voto em um candidato possa eleger outro candidato, de outro partido, simplesmente em razão de um convênio entre legendas.
A EC 97/2017 também criou a cláusula de barreira, fixando porcentuais mínimos de voto para que cada legenda tenha acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda supostamente gratuita de rádio e televisão. Ao limitar os incentivos a partidos nanicos, que, sem votos e sem representatividade, servem apenas a seus donos, deu-se um importante passo para reduzir a fragmentação partidária.
A atual quantidade de legendas não contribui para a representação política. Há muitas siglas à escolha do eleitor, mas não há um aumento de opções políticas. Além disso, a diminuição do número de partidos contribui para um ambiente de negociação política menos fisiológico. A atual fragmentação partidária é um convite à transformação da política em balcão de negócios.
Vale mencionar também que, em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da doação de pessoas jurídicas a campanhas e partidos políticos. Além de gerar conflitos de interesse e ser estímulo à corrupção, o financiamento de campanhas eleitorais por empresas representava grave distorção do sistema político.
O atual sistema está longe de ser ideal. Basta ver a quantidade de dinheiro público que é destinada a partidos políticos, por meio do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral. Legendas são entidades privadas que devem ser financiadas por seus associados e entusiastas, não com recursos do contribuinte. De toda forma, os avanços ocorridos nos últimos anos são importantes e não podem ser desprezados.
No entanto, o Congresso, especialmente a Câmara dos Deputados, tem produzido nos últimos meses verdadeiros desastres em matéria eleitoral. Nesta semana, os deputados votaram duas medidas que excluem ou interferem diretamente sobre os avanços promovidos pela EC 97/2017, como se o objetivo do trabalho legislativo fosse estragar o que legislaturas passadas fizeram.
No dia 12 de agosto, a Câmara aprovou um projeto de lei, apresentado em 2015 no Senado, que tenta burlar a cláusula de barreira. O Projeto de Lei (PL) 2.522/15 permite que dois ou mais partidos se reúnam em uma federação. Após o registro da federação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os partidos são tratados como se fossem uma única legenda, escapando dos efeitos da cláusula de barreira. No entanto, cada partido continua dispondo de identidade e autonomia próprias.
O PL 2.522/15 é uma evidente trapaça. Por meio de uma lei ordinária, o Congresso reduz o alcance e os benefícios da cláusula de barreira, criada por Emenda Constitucional. Com a medida, em vez de buscar votos, basta que os partidos nanicos assinem convênios entre si, continuando a receber os recursos e as facilidades do Estado.
O outro retrocesso é ainda mais descarado. Em primeiro turno, a Câmara aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 125/11, liberando as coligações partidárias em eleições proporcionais. A proibição nem sequer foi aplicada nas esferas federal e estadual, e já se tenta excluí-la da Constituição.
As duas mudanças aprovadas na Câmara atingem especialmente a qualidade da representação e a funcionalidade do sistema político. É a perfeita antirreforma, em estrondosa indiferença com o interesse público e o eleitor.