Depois de uma série de protestos contra a vacinação e o novo passaporte da vacina do governo, Trieste, no nordeste do país, tem disparada de casos
Quando a Itália introduziu o passe de saúde mais rígido da Europa no mês passado, a cidade portuária de Trieste, no nordeste, antes um centro marítimo cosmopolita do Império Austro-Húngaro, tornou-se o epicentro de protestos conduzidos pelos céticos da vacina, ao lado dos trabalhadores portuários, gritando que a medida infringia seu direito ao trabalho.
Agora, duas semanas depois, Trieste emergiu como um centro de um surto de covid ligado diretamente aos protestos que ameaçam lotar unidades de terapia intensiva, forçar novas restrições de distanciamento social e arruinar a reputação de uma cidade mais conhecida como uma fronteira cultural com grandes ambições para seu porto revitalizado.
“A situação em Trieste é particularmente preocupante”, disse o Fabio Barbone, epidemiologista que lidera o esforço contra a propagação da covid na região de Friuli-Venezia Giulia, de onde Trieste é a capital.
O presidente da região, Massimiliano Fedriga, foi mais direto, dizendo: “É o momento de dizer com clareza: chega de idiotice”.
Sob a liderança do primeiro-ministro Mario Draghi, a Itália conseguiu conter os casos da covid depois de ter sido devastada no início da pandemia, fato elogiado na cúpula do G20 que ele sediou no último fim de semana, em Roma.
Mas o surto de Trieste mostra como uma minoria não vacinada – seja motivada por preocupações sobre liberdade, direito ao trabalho ou teorias de conspiração infundadas – ainda pode ameaçar a saúde pública e como pode ser difícil fazer resistentes à vacina se vacinarem.
A Itália não está sozinha. Na Alemanha, um aumento nos casos e hospitalizações levou o ministro da saúde, Jens Spahn, a alertar para “uma pandemia principalmente entre os não vacinados, e em massa”.
Em uma manhã recente, a principal praça de Trieste virou um teatro de muitas de suas manifestações. Dario Giacomini, um líder dos protestos e radiologista que foi suspenso por seu hospital por se recusar a ser vacinado, sentou-se do lado de fora do Caffè degli Specchi. Sem um Passe Verde, como é conhecido o passaporte da vacina na Itália, ele não tinha permissão para ficar lá dentro.
Enquanto os manifestantes na praça faziam poses de ioga ou erguiam cartazes com os dizeres “Trieste liga, Itália atende”, ele reclamou que o passaporte da vacina afastou os não vacinados da força de trabalho do país e deixou os céticos da vacina “socialmente mortos”. O movimento anti-Passe Verde se espalharia por toda parte, insistiu Giacomini, mas “Trieste foi a centelha”.
No entanto, embora os protestos em outras partes da Itália tenham cessado com a aceitação do Passe Verde pelos italianos, em Trieste as autoridades, ansiosas para pôr fim à nova reputação da cidade como centro do ceticismo sobre as vacinas tiveram de proibir novos protestos na praça e ameaçar com punições contra aqueles que desobedecerem.
Alguns cidadãos estão fartos. No domingo passado, Mitja Gialuz, professora universitária de Direito e figura destacada de Trieste, fez uma petição a todos os moradores para que declarassem acreditar na ciência e na vacina. Já tem quase 50.000 assinaturas.
“Chega agora”, disse Antonio Paoletti, presidente da associação empresarial de Trieste. “Não podemos permitir que uma minoria de uma minoria bloqueie as atividades, os negócios e o sustento das pessoas por semanas.”
Muitos italianos começaram a se perguntar o que diabos está acontecendo em Trieste, que muitas vezes parecia um lugar à parte.
Seguindo seu papel central no Império Austro-Húngaro, Trieste serviu como um ponto central entre impérios e uma encruzilhada da Itália, Europa Central e os Balcãs.
Na virada do século 20, foi um viveiro do movimento italiano para reclamar terras na península e através do Adriático. (“Viva l’Italia! Viva Trieste!” Guglielmo Oberdan gritou da forca depois de não conseguir assassinar o imperador austro-húngaro em 1882.)
Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o Reino Unido controlaram Trieste, relutando em deixá-la cair nas mãos da Iugoslávia comunista. Eles finalmente a entregaram à Itália em 1954. Uma enorme placa “Bem-vindo ao Território Livre de Trieste” no centro da cidade lembra que alguns aqui ainda acreditam que a cidade foi anexada ilegalmente pela Itália.
“Se você olhar Trieste, sempre foi um lugar particular”, disse Giacomini, que não é da região, em um esforço para explicar sua tendência independente contra os decretos de vacinação de um governo que ele comparou a uma ditadura. Os especialistas aqui chamam isso de absurdo.
“As pessoas que falam de independência – isso não tem nada a ver com independência”, disse Piero Delbello, diretor do Instituto Regional da Cultura Ístria, do Fiúme e Dálmata, enquanto checava o Passe Verde de um homem em busca de registros familiares em seu museu, que funcionou como posto de vacinação durante a gripe espanhola de 1921. “Não procuremos motivos históricos onde não existem.”
Ele suspeitava que o nível mais alto de infecções de Trieste tinha mais a ver com sua posição geográfica e fronteira compartilhada com a Eslovênia.
O vice-presidente da região, Riccardo Riccardi, ao atribuir o maior surto aos protestos, concordou que o índice de infecção na região tem muito a ver com sua localização no coração da Europa Central.
“Vivemos numa zona onde nas nossas fronteiras existe uma circulação do vírus extremamente elevada”, disse.
No entanto, para as autoridades, o motivo do aumento foi claro. Valerio Valenti, principal autoridade policial de Trieste, disse a repórteres nesta semana que o surto atual estava “estritamente relacionado” aos protestos. Os médicos concordaram.
O número de novos casos em Trieste na semana passada dobrou em relação à semana anterior para mais de 800, e as autoridades estavam profundamente preocupadas com o crescimento “exponencial” de casos em Trieste.
Em toda a região, os casos positivos aumentaram, enquanto o número de testes permaneceu constante. Os pacientes de covid ocuparam cerca de 18% dos leitos de terapia intensiva da região, cruzando um limiar perigoso.
“O maior aglomerado”, disse Barbone, epidemiologista da região, surgiu em 93 pessoas que se amontoaram sem máscaras e gritaram slogans nos comícios em Trieste. “Todas essas pessoas”, acrescentou ele, “não foram vacinadas”.
As medidas restritivas da Itália, que entraram em vigor em 15 de outubro, exigem prova de vacinação, um teste rápido negativo ou recuperação recente de covid para ir ao local de trabalho. O líder dos estivadores que protestavam contra a lei era Stefano Puzzer, um ativista local com ambições políticas.
Ele próprio vacinado, argumentou que era injusto impedir pessoas não vacinadas de trabalhar, forçando-as a pagar por seus próprios testes de covid. Muitos de seus apoiadores apontaram que a Constituição da Itália começou com as palavras “A Itália é uma república democrática baseada no trabalho”.
O governo rejeitou o caso, argumentando que seria muito caro pagar por milhões de testes e que tal política prejudicaria os esforços de vacinação do governo. Mas os protestos, às vezes interrompidos com canhões de água, atraíram todos os tipos de manifestantes anti-vacinas, e uma grande manifestação planejada para o final de outubro prometeu dezenas de milhares de manifestantes.
Na véspera do comício, depois de falar com as autoridades, Puzzer a desmontou por medo de infiltração de elementos violentos.
“Não venha para Trieste porque é uma armadilha, uma grande armadilha”, apelou Puzzer nas redes sociais, levando a novas teorias conspiratórias de Giacomini e outros céticos da vacina sobre a infiltração de espiões do governo para incitar a violência e manchar seu movimento.
Ciro Mauriello, 29, um dos manifestantes não vacinados que veio da região de Emilia-Romagna com um amigo de Roma para o protesto antes de ser cancelado, acreditava que o Estado pretendia sabotar o comício. “Como em 6 de janeiro nos Estados Unidos”, disse ele, afirmando que os democratas planejaram o ataque para fazer com que os apoiadores de Trump ficassem com a fama. Atrás dele, outros manifestantes jogavam, tentando pegar e atirar uns nos outros, uma injeção falsa simulando uma vacina.
O que muitos deles realmente pegaram foi covid. “Há alguns dias, eu estava diante dos canhões de água e fiquei molhado o dia todo”, escreveu no Facebook em outubro Fabio Tuiach, estivador e ex-membro da Câmara Municipal de Trieste, ligado ao partido político de extrema direita Lega e aos neofascistas da Forza Nuova 25, depois de ter testado positivo para covid-19. “Acredito que, com as temperaturas em Trieste no final de outubro, é impossível não ficar doente e, de fato, testei positivo.”
Ainda assim, ele insistiu: “Para mim, covid só existe na mente daqueles que foram hipnotizados”.