Bolsonaro compra votos de pobres com dinheiro público e não paga o que deve a credores que pagam impostos
Pagar dívidas não é o hábito preferencial de gestores públicos brasileiros. Quando uma obra dita pública derruba uma propriedade alheia, o Executivo recorre a uma aliança secreta com outro Poder, o Judiciário, para adiar por decênios a indenização devida. Mas até a leniência de juízes e tribunais finda e o pagamento torna-se obrigatório. É o precatório. Na velha política, tais débitos terminam contados em bilhões.
Na “nova política”, emergiu das sombras da mais hedionda tirania das Américas a do chileno Pinochet. Paulo Guedes, economista soit-disant liberal, garimpou em nossas contas públicas duas saídas para o aparente impasse. Diante da fatura de R$ 90 bilhões a serem pagos a credores acumulados por decênios, ele vislumbrou uma porta de saída no arrombamento do teto dos gastos, construído no meio governo Temer para deter a cupidez dos gastões de caraminguás na república da gastança. O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega engendrou a metáfora perfeita em entrevista para o blog do Nêumanne no portal do Estadão: o teto é o oposto, uma âncora. E, ao abandoná-lo, o ministro da Economia do desgoverno Bolsonaro a lançou ao mar. A situação é esta: a economia brasileira atualmente é uma nau à deriva e não tem mais como aportar. O mercado ficou “nervosinho” na ironia grosseira do chefão-geral da república dos insanos.
O professor Pardal do neofascismo militarista abordou almas gêmeas na Câmara dos Deputados tupiniquim, ao se livrar de Rodrigo Maia, substituído por Arthur Lira na presidência da Mesa; e incorporou o cinismo sem vergonha nem piedade de um egresso da mesma gestão que criou o dispensado teto de gastos, Ricardo Barros. Ministro da Saúde de Temer, esse montador de cifrões superpostos instalou um sistema próprio de picaretagem na pasta. Sua obra máxima foi comprar por R$ 20 milhões jamais devolvidos remédios de doenças raras nunca entregues. Flagrado por um servidor e seu irmão deputado, ambos bolsonaristas, Luís e Luís Ricardo Miranda, ouvidos na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid no Senado, enfrentou seus acusadores com a audácia de quem nada teme porque muito sabe de quem interessa. E criou com precisão penetrante a situação que seu associado Guedes definiria como “devo, não pago, porque preciso gastar”. Deu, então, a segunda razão de jogar ao mar o teto que era âncora e virou asa. O Bolsa Família deixou 5,3 milhões de famílias miseráveis do Brasil ao relento. Essas famílias, Sua Excelência sabe muito bem, têm fome feroz e votam com o estômago. Danem-se os pagadores de impostos, Estados e municípios, aos quais o governo não pagará para poder inventar uma esmola chamada de “Auxílio Brasil”, assumindo a natureza irrefutável de nossa república da mendicância militante.
Os bilhões do “calote infinito”, inventado pela releitura do relator da PEC dos Precatórios, Hugo Motta, produzirão a felicidade de usuários dos Fundos Partidário e Eleitoral, que poderão pagar com apoio irrestrito verbas sem fiscalização da democracia secreta, cujos símbolos são os caranguejos da Lagoa do Mundaú. Afinal, estes vivem na lama para não ser vislumbrados pelas lanternas dos agentes da lei, tratados como inimigos. A ministra Rosa Weber tentou restaurar a natureza transparente da democracia, ausente nos manguezais infectos, mas os próprios colegas do Supremo Tribunal Federal acolhem os queixumes dos profissionais da democracia onde a lei nunca impera, fazendo de conta que não entendem o que o acadêmico Joaquim Falcão definiu com a lâmina de uma adaga afiada: “O que está em jogo neste episódio é a ambição sem competência da Câmara para censurar o Brasil”.
Pois é. Para quem pensa que a Câmara se resume a Lira e Barros, é o caso de lembrar que, dos 312 votos obtidos contra a Constituição e acima do regimento da Casa, muitos se fingem de oposição ou, como está na moda, de terceira via. Tucanos votaram como urubus seguindo as ordens de Aécio Neves, que desrespeita a memória do avô, Tancredo, e Leite, que em nada lembra Simon. Os brizolistas do PDT mandaram às favas seu presidenciável de ocasião, Ciro Gomes. E os socialistas do Capibaribe não têm reverências a prestar a Miguel Arraes nem a Eduardo Campos.
Na semana em que isso se passa, meus amigos, meus inimigos, como registrou o poeta Manuel Bandeira, nossa Marinha de Guerra completa um legado de 111 anos. No Natal de 1910, o capitão de mar e guerra Marques da Rocha, carcereiro de marujos sobreviventes da vitoriosa Revolta da Chibata, foi acusado por João Pessoa, promotor militar, pela morte de encarcerados por asfixia numa cela sem janela da Fortaleza de São José na Ilha das Cobras, na Baía da Guanabara. Mas foi absolvido, promovido e convidado a jantar com o presidente, Marechal Hermes, no Palácio do Catete. Hoje, um projeto definindo João Cândido como herói nacional, aprovado pelo Senado, é combatido com bravura inédita pelos nossos guerreiros do cisne branco na Câmara de Lira e Barros. A república da mentira também é o valhacouto dos covardes.