A República resiste
Apesar da ofensiva bolsonarista a vários princípios da República, observa-se uma notável capacidade desse regime de se manter firme como ideia e realização
Seria ingênua a pretensão de que não haja ameaças contra o regime republicano. O poder sempre tende a se expandir. A atuação humana produz invariavelmente algum nível de atrito com o princípio da igualdade. Por isso mesmo, a República e seus princípios estruturantes são tão importantes. Não são ornamentos, mas uma necessidade.
De toda forma, nos últimos anos, observam-se dois fenômenos especialmente preocupantes contra a República. O primeiro refere-se ao governo federal. Desde que chegou ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro afronta o regime republicano. Não tolera a liberdade de imprensa. Não consente que as instituições funcionem de maneira independente, dentro de suas respectivas atribuições. Não admite plena vigência ao princípio da separação dos Poderes.
Não é mera questão de estilo pessoal. Por exemplo, causa dano à República que o presidente da República trate toda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contrária a seus interesses como uma afronta à sua pessoa ou uma violação das prerrogativas do Executivo. Agindo assim, Jair Bolsonaro transforma a atuação do Judiciário, institucional e dentro das regras do jogo, em suposto abuso da vontade popular e da Constituição, gerando enorme confusão. Poucas vezes na história do País viu-se uma decisão do STF pacífica e perfeitamente aderente ao texto constitucional – como a que reconheceu a competência compartilhada dos três níveis federativos a respeito da saúde pública – ser tão insistentemente distorcida pelo Executivo federal.
Entre os muitos efeitos perniciosos, esse modo de proceder de Jair Bolsonaro parece autorizar outras autoridades à mesma atitude antirrepublicana. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que o diga. Sua recente defesa das emendas de relator partia da ideia de autonomia absoluta do Legislativo, inteiramente estranha ao que prevê a Constituição. E não foi caso isolado. Tem sido comum a rejeição dos limites do exercício do poder.
Vinculado ao anterior, o segundo fenômeno de ataque à República é mais amplo e duradouro. Não terminará com a saída de Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto. Trata-se da difusão de desinformação sobre conceitos fundamentais da República, distorcendo a percepção da população sobre direitos e deveres.
Caso paradigmático dessa manipulação se refere ao conceito de liberdade. A República é um regime de liberdade, com abrangente respeito pelos direitos e garantias de cada indivíduo. Não importa apenas a colegialidade. Cada pessoa possui uma dignidade fundamental, a merecer respeito do Estado e de todos os outros indivíduos.
No entanto, é cada vez mais frequente verificar uma suposta defesa da liberdade em termos inteiramente antirrepublicanos. Pelo discurso de alguns, tantas vezes invocado pelo bolsonarismo, a liberdade de expressão constituiria uma autorização para a impunidade. Cada um poderia dizer o que bem entendesse – cada um poderia agredir, ameaçar e destruir com suas palavras o que bem entendesse – e o poder público nada poderia fazer. Ora, a liberdade republicana é uma liberdade real, não utópica, devidamente protegida pelo regime de leis. Ausência absoluta de limites não é liberdade, mas anarquia e prevalência do mais forte.
A situação atual tem tons dramáticos, não há dúvida. Mas se observam também vetores positivos. Perante o bolsonarismo e a desinformação, as instituições republicanas têm reagido. Com limitações, de forma imperfeita e muitas vezes atrasada, a resistência é nítida. E isso é precisamente a República. Não é o regime da perfeição, mas oferece os remédios e ajustes para que, apesar dos pesares, se possa avançar em liberdade e em igualdade. Sem utopias, a República traz a nota da insatisfação. Os direitos são para todos.