Sentença foi lida nesta sexta-feira após dez dias de julgamento em Porto Alegre. ‘A culpabilidade dos réus é elevada, mesmo em dolo eventual’, disse o juiz
Os quatro réus apontados como responsáveis pelo incêndio que deixou 242 mortos na Boate Kiss, em janeiro de 2013, foram condenados pelo Tribunal do Júri em Porto Alegre nesta sexta-feira, 10. As penas variaram de 18 a 22 anos de prisão e os acusados chegaram a ter a prisão decretada, o que acabou revertido por força de um habeas corpus. A sentença encerrou um julgamento de 10 dias sobre a tragédia que aconteceu na cidade de Santa Maria.
Depois da deliberação dos jurados nesta tarde, o juiz Orlando Faccini Neto, que conduziu o julgamento, leu o veredito. Ele começou afirmando que todos foram condenados e destacou a gravidade das condutas. “A culpabilidade dos réus é elevada, mesmo em dolo eventual. Este muito (tempo de vida) não foi retirado por obra do acaso”, comentou.
Depois passou a ler parte do veredito e definiu as penas de cada um, decretando a prisão imediata. Um dos réus foi beneficiado por um habeas corpus preventivo, benefício que acabou estendido a todos. Cabe recurso a instâncias superiores contra a decisão do júri. A pena pode vir a ser anulada, de acordo com a previsão legal, se os magistrados entenderem que a posição dos jurados foi de encontro a provas do processo. Há ainda uma discussão em andamento no STF sobre o cumprimento imediato de condenações definidas pelo Tribunal do Júri.
Veja quem são os condenados pelo caso da Boate Kiss e quais são as penas:
- Elissandro Callegaro Spohr (sócio-proprietário do local): condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão
- Mauro Londero Hoffmann (sócio-proprietário do local): condenado a 19 anos e 6 meses de reclusão
- Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira): condenado a 18 anos de reclusão
- Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor do grupo): condenado a 18 anos de reclusão
“Foram mais de 240 mortes. E a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias, multiplica-as”, disse o magistrado ao ler a sentença.
“No caso de perda de entes, como no presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado. De maneira que arriscar o esquecimento desses dramas pessoais, gerados pela prática de um crime, implicaria justamente no oposto, numa demonstração de que a ordem jurídica não compreende a vítima, o sujeito violado, seus familiares, com o devido respeito e consideração”, acrescentou.
A condenação e a estipulação das penas também levou em consideração as circunstâncias em que as mortes aconteceram em meio ao incêndio na casa noturna.
“Quem num exercício altruísta por um minuto buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor, o padecimento das pessoas, que na luta pela sua sobrevivência recebiam todavia a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura: o horror, o horror”, apontou o juiz do caso.
Assista à leitura da sentença pelo juiz do caso da Boate Kiss
Carta psicografada, labirinto e ‘não sou assino’; relembre os momentos do julgamento
O julgamento da Boate Kiss se estendeu pelos últimos dez dias, período no qual foram ouvidas 12 sobreviventes, 16 testemunhas e um informante. A última semana foi marcada pela emoção dos depoimentos, evasivas sobre responsabilidade dos réus e até uma carta psicografada. O documento foi apresentado por uma advogada como estratégia de defesa de um dos acusados.
A primeira testemunha ouvida foi Kátia Giane Siqueira, sobrevivente da tragédia que trabalhava no bar da boate e teve 40% do corpo queimado. Ela confirmou que foi feita uma reforma para elevar o piso do palco antes do incêndio e disse: “A Kiss era um labirinto, eu mesmo trabalhava lá e quase não consegui sair”.
O réu Luciano Bonilha, também no início do julgamento, na quarta-feira, 1, chegou ao fórum de Porto Alegre e gritou que não era “assassino”. Ele confessou ter sido a pessoa que comprou os artefatos pirotécnicos que deram origem ao incêndio. “Eu sei que o coração dos pais não entende a minha dor. Se eu tivesse morrido lá, hoje aqui sentado, tenho a maior joia da minha vida, minha mãe. Ela está ali sentada com eles. Esses pais não têm mais o abraço, o carinho dos filhos. É legítimo deles lutar por justiça. Mas eu tenho a consciência de que não foi o meu ato que tirou a vida desses jovens. Se for para tirar a dor dos pais, estou pronto, me condenem”.
Julgamento é considerado o mais longo da história do Rio Grande do Sul
Este caso, com mais de 19 mil páginas, é considerado o maior e o mais longo da Justiça do Rio Grande do Sul. O Ministério Público pedia a condenação de todos os acusados por homicídio doloso (quando o acusado tem a intenção ou assume o risco de morte).
A sustentação foi feita pelos promotores David Medina da Silva e Lúcia Helena Callegari, e pelo assistente de acusação Pedro Barcellos, representando as vítimas. Já os advogados dos acusados pediram absolvição ou pelo menos alterar a pena de dolo para culpa.
Os quatro réus respondiam por homicídio simples, consumado 242 vezes (total de vítimas) e tentado outras 636 (número de sobreviventes). O incêndio na Boate Kiss começou durante o show da banda Gurizada Fandangueira, quando Santos disparou um artefato pirotécnico, atingindo parte do teto do prédio, que era coberto por uma espuma e pegou fogo rapidamente.
Além do incêndio que provocou a morte de muitos jovens naquela noite, outra parte das vítimas morreu após inalar a fumaça tóxica liberada com a queima da espuma de proteção acústica no teto. Segundo a perícia e relatos de sobreviventes, não havia ventilação adequada ou extintores de incêndio apropriados no local.