Arquitetura da impunidade
Indícios de desvios são abundantes. Se houve crime ou não, cabe à Justiça decidir, mas o fato é que Bolsonaro cultiva condições propícias ao florescimento da corrupção

Para ficar só no ano de 2021: o então ministro do Meio Ambiente foi acusado de dificultar a fiscalização ambiental e patrocinar interesses privados de madeireiros ilegais; o superintendente do Ministério da Saúde do Rio de Janeiro foi demitido após assinar contratos sem licitação para reformas dos prédios da pasta; o Ministério da Saúde firmou um compromisso de compra de vacinas por um preço 1.000% maior do que o anunciado pelo fabricante e seu ex-diretor de Logística foi acusado de pedir propina para autorizar a compra de vacinas. Em 2022, o Estadão revelou que dois pastores atuavam em nome do Ministério da Educação (MEC) para privilegiar municípios na distribuição de recursos; agora, vêm à tona indícios de compras com sobrepreço e improbidade na gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
A Justiça decidirá se nesses casos – assim como em relação aos indícios de peculato (“rachadinha”) de Bolsonaro e seus filhos no exercício de seus mandatos parlamentares – houve ou não crime. Mas desde já é demonstrável que há um modus operandi propício ao florescimento da corrupção.
Como apontou ao Estadão o economista Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, desde 2016 a Lei Anticorrupção e o aumento do controle sobre as empresas dificultaram os megaescândalos que grassaram na gestão petista, como o mensalão e o petrolão. Hoje, “o que resta em termos de negociação para um governo fraco é a corrupção do varejo”.
A cultura do segredo está disseminada. O gabinete secreto do MEC espelha um outro, revelado na CPI da Pandemia: o do Ministério da Saúde. Em maio, o Estadão revelou que Bolsonaro e seus suseranos do Centrão maquinaram um orçamento secreto de bilhões em emendas parlamentares distribuídos às bases do governo.
Bolsonaro subverteu a lógica elementar da administração pública: a transparência, que deveria ser a regra, transformou-se na exceção. O governo tentou ampliar a discricionariedade de servidores para classificar documentos como sigilosos e instrui seus ministros a negar pedidos via Lei de Acesso à Informação. Na pandemia, a opacidade foi tanta que a imprensa criou um consórcio para garantir informações confiáveis.
Há indícios de aparelhamento em todos os principais órgãos de controle: da Polícia Federal à Agência Brasileira de Inteligência, Receita, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional ou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
Mas, além da corrupção em seu sentido estrito, como tipo penal, o estilo Bolsonaro de governar propicia a corrupção em seu sentido amplo de corrosão, erosão, desintegração. Para ele, “governar” é “mandar”, e quando distingue interesses de Estado, de governo e de família, é só para sobrepor os últimos aos primeiros. É a política do “filé para os filhos”.
Além da transparência, não há um só dos demais princípios da administração pública (impessoalidade, eficiência, moralidade e legalidade) que não tenha sido degradado. O mesmo vale para as tentativas de corroer os alicerces do Estado democrático, como o processo eleitoral ou a participação da sociedade civil.
Os indícios de disseminação de notícias falsas por um “gabinete do ódio” se acumulam e devem aumentar no ano eleitoral. Só em 2021, o presidente já questionou, sem provas, a integridade do sistema eleitoral, ameaçou ignorar os resultados das eleições e pediu a cabeça de dois ministros do Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, após seu indicado Kassio Nunes Marques assumir sua vaga na Corte, declarou: “Hoje, eu tenho 10% de mim no STF”. Depois, disse que as indicações para o STF em 2023 importam mais que as eleições. O motivo é indisfarçável: blindar amigos e garantir vista grossa à intimidação de inimigos.
Reza a sabedoria popular que quem não deve não teme. Então, por que tanto afinco em institucionalizar uma cultura do segredo e interferir em órgãos de controle?