Freio na irresponsabilidade

By | 06/09/2022 7:25 am

Projeto do piso da enfermagem atropelou ritos, omitiu-se sobre fonte de financiamento e abriu a porteira para outras categorias; suspensão por liminar do STF era, pois, esperada

(Editorial do Estadão, em 06/09/2022)

Em liminar dada no último domingo, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) e suspendeu a vigência do novo piso nacional da enfermagem. A medida cautelar gerou revolta entre os profissionais da área e os parlamentares que aprovaram o projeto, mas sua concessão pelo ministro era mais do que esperada. Trata-se de uma consequência natural do debate público sobre o tema, marcado pela superficialidade do Legislativo e pela omissão do Executivo – agravada, neste caso, pelo desespero eleitoral de Jair Bolsonaro. Independentemente do incontestável mérito da categoria ao longo da pandemia de covid-19, o assunto jamais poderia ter sido tratado da forma irresponsável como foi, sobretudo quando envolve o setor público, entidades filantrópicas e mais de 2,7 milhões de profissionais.

Desde a apresentação até a sanção de tal projeto de lei, passaram-se pouco mais de dois anos, um tempo expresso no processo legislativo. A proposta nasceu com um insanável vício de iniciativa – foi apresentada por um senador, quando a proposição de pisos salariais é prerrogativa do Executivo. Não poderia, portanto, nem mesmo ter tramitado, e, uma vez aprovada, obrigatoriamente deveria ser vetada. Mas o Congresso inovou: não só deu aval ao projeto, como atrasou seu envio à sanção presidencial. Dentro de um espaço de dois meses, o Legislativo apresentou e promulgou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para retirar do governo a exclusividade na proposição do piso, eliminando, de forma retroativa, a natureza inconstitucional do projeto de lei que havia sido aprovado semanas antes – somente então ele foi enviado à sanção. Em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro acatou a proposta, não por concordar com seus termos, mas para não perder votos de uma categoria majoritariamente feminina. Chamada a se manifestar na ação, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou pela constitucionalidade do piso – incentivando o avanço de quase 200 projetos de lei que visam a regulamentar a remuneração de profissionais como fisioterapeutas, guardas municipais, policiais e conselheiros tutelares, já em tramitação na Câmara e no Senado.

A tentativa de usar a Constituição para impedir um veto presidencial já seria suficiente para condenar a atuação conjunta do Congresso e do governo. Mas, unidos, eles foram muito além. A despeito do impacto que a majoração dos salários da enfermagem teria nas contas públicas, fizeram a legítima cortesia com o chapéu alheio e aprovaram o piso sem fixar uma fonte de recursos para custeá-lo. O projeto se limitou a deixar as indefinidas possibilidades de financiamento em aberto – entre elas a arrecadação oriunda da legalização dos jogos de azar e a inclusão do setor de saúde entre os que fazem jus à desoneração da folha. Um grupo de trabalho da Câmara calculou que a política salarial exigiria R$ 16,3 bilhões extras, dos quais R$ 4,1 bilhões do setor público municipal e R$ 5 bilhões de entidades sem fins lucrativos.

Diante da negligência do Executivo e do Legislativo, restou ao ministro Luís Roberto Barroso chamá-los a assumir as responsabilidades que deixaram em segundo plano. Em sua decisão, o ministro deu 60 dias para que seja esclarecido o impacto financeiro do piso nacional da enfermagem, bem como suas consequências sobre a empregabilidade e a qualidade dos serviços de saúde. Nas palavras de Barroso, ao aprovar e sancionar o projeto sem cuidar das providências para viabilizar sua execução, governo e Congresso “teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta”. É apenas mais uma história a ilustrar o pensamento mágico predominante no que diz respeito ao orçamento público, de forma geral, e ao financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular. Em um ano eleitoral, e considerando os resultados das pesquisas, tudo indica que lamentavelmente não será a última.

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Category: Nacionais

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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