A marcha da insensatez progrediu num crescendo, desde que, no pleito de 2018, o deputado Eduardo Bolsonaro dizia em tom de galhofa que, “para fechar o STF, basta um cabo e um soldado” até as turbas invadindo as sedes dos Três Poderes, culminando com a depredação do STF.
Na verdade, essa página da história da infâmia nacional foi rascunhada muito antes, nos idos dos anos 80, com o capitão Jair Bolsonaro planejando plantar bombas em quartéis. A facilidade com que os vândalos fatiaram as barreiras policiais no 8 de janeiro espelha a complacência em meio à qual o deputado do baixo clero Bolsonaro excretou seu destempero no Congresso por anos a fio. Mas seus vitupérios folclóricos – o delírio de fuzilar FHC e mais “uns 30 mil”, a blague abjeta aludindo ao estupro de uma colega ou a apologia a um torturador na tribuna da Câmara – são só as secreções mais repugnantes de um espírito profundamente autoritário e truculento que se imiscuiu sem resistência nas cavidades da República.
Bolsonaro só opera no confronto. A animosidade é o ar que respira. Na sua falta, ele a incita, transformando adversários em inimigos e conjurando conspirações fantasmagóricas. Mas o maior inimigo de Bolsonaro não é o PT – de quem emulou as táticas populistas –, nem a “velha política” fisiológica – a quem prestou a mais vil vassalagem –, nem mesmo o STF – que tentou aparelhar com seus sabujos. Seu verdadeiro inimigo é a Constituição.
“Ao longo de sua carreira política”, já dissemos nesta página, “ele tem representado e verbalizado a voz dos perdedores de 1988, aqueles que se opuseram e continuam a se opor ao Estado Democrático de Direito” – às liberdades civis, às garantias individuais, aos direitos humanos, à soberania popular. “Daí que a sua batalha atual seja contra as eleições e as urnas. Tudo integra o mesmo pacote autoritário e antirrepublicano.”
A farsa terrorista do capitão Bolsonaro nos anos 80 se repetiu como tragédia consumada pelas legiões bolsonaristas em 2023. Agora que os pobres diabos da tropa de choque “patriótica” estão presos às centenas e seu “mito”, rejeitado nas urnas, está acoelhado nos arrabaldes da Disneylândia lambendo suas feridas, é tentador supor que a tempestade se dissipou e que a história não se repetirá.
No entanto, menos de um mês após o 8 de janeiro, aqueles que ajudaram a disseminar o espírito liberticida nos últimos anos se congraçavam na inauguração da nova legislatura. Os mesmos que passaram quatro anos fazendo do golpismo um ativo eleitoral estão lá no Congresso, como se nada tivesse acontecido, como se a antidemocracia fizesse parte do jogo. Sob o manto da imunidade parlamentar, a bancada golpista esfrega as mãos para mais quatro anos de arruaça.
Com personagens tão caricatos quanto estridentes, é difícil encontrar o equilíbrio entre não subestimá-los e não superdimensioná-los, entre contemporizar o 8 de janeiro e insuflar o pânico. Sim, eles estão em baixa, com menos poder do que nunca desde 2018. Mas quase elegeram o presidente do Senado. Rogério Marinho nunca foi radical, é o típico oportunista do establishment. Mas exatamente essa miscigenação entre a face sistêmica da política e sua face extremista é um alerta ao risco de naturalização do golpismo. Como advertiu a sobrevivente do extremismo islâmico Ayaan Hirsi Ali, “tolerância com a intolerância é covardia”.
Os discursos inaugurais dos presidentes das Casas Legislativas e do Judiciário prometendo punição exemplar a todos que participaram, financiaram e estimularam os atentados são um sinal alentador de que a sabedoria popular foi assimilada: “Um povo que não aprende com a sua história está condenado a repeti-la”. É preciso sepultar o bolsonarismo, sem esquecê-lo. Sua trajetória, grotesca como é, deve servir como uma espécie de monumento às avessas a um outro dito da sabedoria popular: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.