(Reinaldo Azevedo, no 83 Agora, em 19/02/20232)
O Globo publicou uma reportagem redondinha sobre a situação do varejo e o estrago provocado no setor pela política de juros — escorchantes, acrescento eu — em curso. O título: “Americanas, Oi, Marisa, Tok&Stok: por que tantas empresas estão em crise?” E o subtítulo, eficaz, que resuma as causas: “Para economistas, país vive ‘tempestade perfeita’, com juro alto e consumo fraco, que agravam problemas de gestão e ampliam dificuldades nas companhias”. O texto é assinado por Glauce Cavalcanti, que trabalhou direito.
A matéria é quase perfeita não fosse por um detalhe — e Glauce não tem culpa, direi por quê. As se elencarem as causas da crise, registra-se em dois momentos do texto : “Por fim, a incerteza sobre a política fiscal do novo governo compromete a confiança dos investidores, apontam especialistas.” (…) “Há também o componente político. A indefinição do governo sobre a política fiscal e as rusgas do Executivo com o BC dificultam a queda dos juros .”
Numa matéria tão rica de fatos, eis que se imiscui a “doxa”, aquilo que é obrigatório dizer, embora falso. Define o Houaiss: “Doxa: sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que para a filosofia não passa de crença ingênua, a ser superada para a obtenção do verdadeiro conhecimento”.
Não estou afirmando que o Globo obriga a que se responsabilize também o atual governo pela crise nas empresas. Mas essa é a metafísica influente; isso é o que todos dizem; esse virou o consenso estabelecido. Não escrevê-lo cheiraria a omissão ou subestimação de uma verdade óbvia. E então o BC segue ministrando a sua cloroquina para a inflação em curso: juros altos. A droga é inócua para a doença e provoca efeitos colaterais graves. Segue a reportagem do Globo em vermelho. Comento em preto.
Primeiro foi a Americanas. Depois, Oi, Marisa, Nexpe (antiga Brasil Brokers), Tok&Stok. A lista de empresas com dificuldades para pagar dívidas, buscando reestruturação financeira ou até proteção da Justiça, não para de crescer neste ano. Por trás da série de crises, uma conjunção de fatores agrava problemas operacionais e de gestão.
O principal elemento é a alta dos juros, que encarece o crédito. A Selic, taxa básica definida pelo Banco Central (BC), disparou de 2% no início de 2021 para 13,75% em agosto de 2022 e se mantém neste patamar. Soma-se a isso a lenta retomada do consumo, afetado pela inflação e pela perda de renda da população, já muito endividada, derrubando os ganhos das corporações. Por fim, a incerteza sobre a política fiscal do novo governo compromete a confiança dos investidores, apontam especialistas.
“Empresa que presta serviço ao consumidor sofreu mais na pandemia e é mais afetada. Não vemos retomada de vendas na proporção necessária para gerar o caixa que diversas empresas precisam para pagar suas dívidas. É dívida que foi postergada nos últimos anos e que, com a alta do juro, ficou bem mais cara”, explica Eduardo Seixas, sócio-diretor da Alvarez & Marsal, consultoria especializada em recuperação judicial e reestruturação.”
Como se nota, está tudo ali. A crise começa a se espalhar entre as empresas de varejo. Obviamente, os juros lunares são a causa principal. E de dois modos: encarece o crédito — e, portanto, muitos consumidores deixam de comprar –, mas não só: a despesa financeira das empresas também se torna estelar. Aumentou sete vezes.
A inflação corrói a renda de que já está endividado, e o remédio que se tem empregado contra ela é a elevação da taxa de juros. Ocorre que não estamos diante de uma inflação de demanda. Como o texto deixa claro, não existe muita gente querendo comprar. Ao contrário. Como aponta Eduardo Seixas, acima, “não vemos retomada de vendas na proporção necessária para gerar caixa”. QUEREM PROVA MAIOR DE QUE O PROBLEMA NÃO ESTÁ NA DEMANDA E, POIS, NÃO RESPONDERÁ AOS JUROS ESTRATOSFÉRICOS? E aí se soma outro efeito da taxa abusiva: quem está devendo fica numa situação ainda pior porque essa dívida fica mais cara. É o ciclo do capeta.
DOXA
E aí chega o momento da “doxa”, da verdade estabelecida e falsa. Acima, fala-se da “incerteza sobre a política fiscal do novo governo”, que compromete a confiança dos investidores”. Seria uma opinião de especialistas.
Ela é obviamente errada, preguiçosa e impensada. Vamos ver: quanto tempo tem essa tal “incerteza”? Poder-se-ia dizer estar aí desde o fim de dezembro, quando se aprovou a PEC da Transição, que prevê a substituição do teto de gastos por um novo arcabouço fiscal.
Respondam: com menos de dois meses, a tal “incerteza” já impactou o endividamento das empresas e levou o consumidor a se retrair? Claro que isso é falso! “Ah, foi desde a vitória de Lula…” Mentira também. O quarto trimestre do ano passado já assistiu a uma desaceleração importante do crescimento, que estava bombado artificialmente por decisões tomadas por Paulo Guedes e Bolsonaro na boca da urna. E, mais adiante, veremos, vai se falar até das críticas de Lula ao BC como elemento que colabora para a crise, o que é espantoso. A primeira crítica do presidente à política de juros foi ao ar numa entrevista no último dia 3. Dezesseis dias depois, será Lula um dos responsáveis pela situação difícil das empresas? Sigamos com o texto de “O Globo”.
Abalo não é sistêmico
A corrida por renegociação de dívidas era esperada por especialistas, mas não é vista como uma crise sistêmica. É que no início da pandemia, houve larga oferta de crédito corporativo e flexibilidade de governo e bancos para renegociar, adiando um problema precipitado agora pela escalada dos juros. E cada companhia tem seus problemas específicos, aguçados pela tormenta, como falhas de governança, conjunturas setoriais e apostas erradas.
Filipe Villegas, estrategista da Genial Investimentos, destaca que o BC foi um dos primeiros do mundo a subir juros contra a inflação. Agora, empresas enfrentam um choque de juros e outro de confiança.
“Foi necessário, mas talvez tenha sido muito intenso. A Selic passou de 2% para perto de 14%. E isso tem efeito muito significativo na população e nas empresas”, diz Villegas. “Há ainda um fator minando a confiança no país, para frente. A estimativa é de crescimento pífio este ano. E o caso da Americanas, uma das maiores varejistas do país, levanta dúvidas sobre quão frágeis podem estar outras empresas, sobretudo pequenas e médias.
É preciso ver o que se entende por “crise sistêmica”. Se não é ainda o fim do mundo, fácil de resolver o problema não será. E ele se espalha. É verdade! O BC brasileiro foi um dos primeiros a elevar a taxa de juros, coisa de que Paulo Guedes, o sem-noção mais arrogante do planeta, se orgulhava muito. Em mais de uma entrevista, bateu no peito para dizer que o Brasil estava certo, e os EUA e a União Europeia, errados. Gênio da raça!
Sim, tanto o FED como Banco Central Europeu estão elevando as respectivas taxas de juros, mas elas ainda são negativas. A nossa é apenas a maior da Terra. Sem que se explique por quê. A única explicação que têm, fajuta!, é o tal “risco fiscal” — vale dizer, a dívida. Não há um só especialista intelectualmente honesto que sustente que a dívida, toda em reais, representa algum risco para os detentores de título público. Isso é simplesmente mentira.
Em um ano e cinco meses, a Selic subiu de 2% — e operar a taxa tão baixa foi igualmente um erro — para 13,75%. E, como resta claro, a inflação não voltou para a meta porque universalmente se sabe que essa inflação, aqui e no mundo, deriva de um choque de oferta, não da demanda. Boa parte dos preços é simplesmente imune à elevação dos juros.
Os críticos da atual taxa de juros são acusados de “heterodoxos” — como se fossem seres estranhos. Ora, heterodoxia é insistir num remédio em doses cavalares, quando sua inocuidade é comprovada. A Selic a 13,75% é a cloroquina do BC para a atual inflação. Não resolve o problema e provoca efeitos colaterais graves.
Há também o componente político. A indefinição do governo sobre a política fiscal e as rusgas do Executivo com o BC dificultam a queda dos juros. Na ponta, tudo se se traduz em freio nos investimentos, observa o estrategista da Genial:
“Uma coisa seria ter uma taxa de juros a 13,75% e sinalização de queda em algum momento próximo. Mas o que temos hoje não é isso. Os fatores centrais continuam e deixam empresas muito alavancadas, minam a confiança dos empresários e mantêm estimativas de geração de caixa menor.”
Vinícius Carmona, diretor de Relações com Investidores do banco de investimentos BR Partners, avalia que uma indicação de queda, ainda que pequena, na Selic tornaria o ambiente mais propício à recuperação das empresas. Mas frisa que a crise não é generalizada:
“Não é um problema sistêmico ou uma crise no setor corporativo. Um custo de dívida (na prática, taxas adicionais cobradas pelos bancos) de 16% ou 17% ao ano é insustentável. A inadimplência está mostrando sinais de piora, principalmente em pequenas e médias empresas. Chega por último nas grandes, o que traz desaceleração ao investimento. Mesmo empresas com caixa preservado, postergam aportes pela incerteza fiscal.”
Pois foi precisamente o que Lula cobrou do Banco Central: uma perspectiva. Em vez disso, a autoridade monetária acenou com a manutenção da taxa pornográfica de juros, não é mesmo?, dizendo aos agentes econômicos que jogassem fora toda a esperança para viver no inferno dos juros.
E vejam ali a “doxa” se mostrando de novo. Será mesmo que a perspectiva de uma nova âncora fiscal, que tem dois meses — ou três e meio se quiserem contar a partir da vitória de Lula — e as críticas do presidente ao BC, com duas semanas, interferiram no caixa e na programação das empresas, na indisposição dos consumidores para as compras e no crescente endividamento financeiro dessas empresas? A afirmação é absurda.
O BR Partners foi contratado recentemente para dar assessoria financeira à varejista Marisa, à rede de agências de viagens CVC e à Nexpe, antiga Brasil Brokers, do setor imobiliário, já em recuperação judicial. Carmona não comenta casos de clientes, mas diz que, no banco, este é o início de ano de maior demanda nessa área:
“O cenário é de ajuste. Os balanços dos bancos mostram aumento de renegociação de dívida com empresas ao longo de 2022. Há deterioração nesse sentido. Os bancos terão de ajustar o spread (taxa além da Selic) porque a percepção de risco aumentou. Com crédito mais caro, não se cria alavancas de crescimento. As empresas têm de priorizar caixa, vender ativos. Vamos ver consolidação (fusões e aquisições).”
Isso significa que os bancos serão ainda mais restritivos para emprestar dinheiro e que os juros cobrados serão ainda mais caros. E, por óbvio, não estamos falando só dos 13,75% da Selic, não é? Essa taxa, na ponta, aumenta muito. A fuça da recessão se mostra. Mas os loucos da carta do Tarô, especialmente no jornalismo econômico, continuarão a caminhar cantando para o abismo. E culpando Lula, por que não? Ah: dizem que “O Louco” é um carta bacana e tal… Não estou debatendo Tarô. Nada sei a respeito. Caminhar feliz para o abismo não me parece uma boa escolha, simbologias místicas à parte.
A Marisa — com 334 lojas e mais de oito mil empregados — informou que contratou a BR Partners para começar pela reprogramação de dívidas de curto prazo. Segundo a varejista, é parte do trabalho que faz para recuperar sua rentabilidade e redefinir seu modelo de negócio diante do cenário desafiador. Também conta com a Galeazzi & Associados para estruturar “mudanças necessárias para incrementar a rentabilidade e a competitividade da empresa”.
Outras companhias vão nessa direção. A Tok&Stok buscou a Alvarez & Marsal, que já atua na crise da Americanas ao lado da Rothschild, responsável pela parte financeira em meio às negociações com credores no âmbito da recuperação judicial. A distribuidora de energia Light, do Rio, contratou o apoio da LaPlace também para reorganizar dívidas.
A operadora de telefonia Oi, que havia concluído sua longa recuperação judicial no fim de 2022, voltou a pedir apoio à Justiça, dizendo-se afetada pela deterioração da economia, com queda mais acentuada em receitas de telefonia fixa e impactos de débitos do passado. A Oi diz precisar da “continuidade do processo de reestruturação de sua dívida, em discussão com os principais credores”, e equacionar a “deficitária telefonia fixa”. Americanas, CVC, Light, Nexpe e Tok&Stok não comentaram.
Se o problema não é ainda “sistêmico”, começa a se generalizar
“A conta chegou”
O caso da Americanas — que anunciou “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões e foi levada à recuperação judicial com dívidas perto de R$ 43 bilhões — é visto à parte, por ser resultado de falhas na governança ainda em apuração, ressaltam os especialistas. No entanto, acabou tornando bancos e credores menos flexíveis com as outras empresas.
“A alta da inflação comeu a margem das empresas porque elas não puderam repassar toda a alta de custo que tiveram ao consumidor. Isso freia geração de caixa enquanto o endividamento subiu demais. É algo acontecendo também em Europa e EUA no pós-pandemia e com a guerra na Ucrânia”, destaca Salvatore Milanese, sócio da Pantalica Partners. ” Agora, com bancos contingenciando recursos por causa da Americanas, o crédito está mais caro e seletivo”.
Para a advogada Juliana Bumachar, especialista em recuperação judicial, dois anos de juros nas alturas esgotaram as apostas de muitas empresas para melhorar a operação:
“Houve mudança na legislação no fim de 2020, que permitiu a mediação para renegociar com credores mesmo antes da recuperação judicial. Isso ajudou. Empresas em recuperação também puderam apresentar novo plano de reestruturação. Algumas usaram essas ferramentas para se reorganizar. Outras empurraram o problema. E a conta chegou”.
Crises respingam nos fornecedores. Se a situação de grandes empresas não é boa, Michael Burt, analista da LCA, diz que a das pequenas é pior:
“A inadimplência de micro e pequenas fechou 2022 em 3,7%, contra 0,13% nas grandes, com tendência de alta. Cresce também a fatia desses negócios com potencial de inadimplência. É um alerta.”
Eis aí. Está tudo dito. Quando Lula apontou para os juros altos, não estava buscando, como disseram alguns idiotas, uma desculpa para o eventual baixo crescimento do seu primeiro ano de governo. Este já estava contratado desde antes — basta ver a desaceleração do quarto trimestre.
Ele mesmo não se referia apenas a um risco, mas a algo já em curso. E que até o jornalismo está sendo obrigado a reconhecer. Só falta agora que a imprensa pare com a fantasia de atribuir as dificuldades também às críticas do presidente ao Banco Central.
Ao contrário: não fosse ele a falar, seria quem? A taxa é inexplicável, injustificável e insustentável. É inexplicável porque as causas elencadas são falsas e se baseiam em falácias; é injustificável porque ninguém consegue apontar por qual caminho ela resolve o problema; e é insustentável porque o remédio mata a o paciente. Afinal, a droga é contraproducente: se a suposta causa única a justificar a indecência é o risco fiscal — e, pois, a dívida —, a Selic estratosférica agrava a… dívida. Acabou a farsa. Falta agora que a imprensa abandone a doxa, que é a “crença ingênua, a ser superada para a obtenção do verdadeiro conhecimento”. Chega de cloroquina!
ENCERRO
Como já evidenciei aqui, a questão dos juros resvala facilmente para a delinquência intelectual. Prosélitos de extrema-direita disfarçados de amigos da verdade tentam transformar os críticos do Banco Central em inimigos da democracia. Estão, eles sim, a serviço de uma causa. E não é a da população ou das das empresas. Como a reportagem deixa claro, nem os bancos estão satisfeitos com a atual situação, e seus respectivos balanços explicam por quê. Mas ai daquele que disser que a cloroquina econômica não funciona! Em matéria de juros, a imprensa é cloroquinista e terra-planista, com raras exceções.