A rigor, nada havia a apurar, só a punir. As imagens do comício, com Bolsonaro e Pazuello discursando em cima de um trio elétrico, falavam por si sós. À época, Pazuello, hoje deputado federal, era oficial da ativa, e tinha encerrado sua catastrófica passagem pelo Ministério da Saúde havia dois meses.
Militares da ativa, como sabe qualquer manga-lisa, são expressamente proibidos de participar de atos políticos. A razão para essa vedação é tão óbvia que seria um desrespeito ao leitor destacá-la. Entretanto, o Exército não apenas livrou Pazuello de qualquer punição, em afrontosa violação da Constituição e do Estatuto dos Militares, como ainda impôs sigilo de 100 anos sobre o processo.
Se esse sigilo, per se, já era uma aberração, a razão que o motivou é uma das maiores vergonhas para o Exército. Como agora sabemos, de fato, nada foi apurado. O que houve foi uma deliberada operação de acobertamento de evidente transgressão militar, tão evidente que basta para explicar a tentativa de mantê-la em segredo por nada menos que um século.
Como se lê no documento agora tornado público, Pazuello, ciente de que estava prestes a violar a Constituição e o Estatuto dos Militares, teve o “cuidado”, digamos assim, de avisar o então comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, com um dia de antecedência, de que compareceria ao ato político convocado por Bolsonaro. Em depoimento, Pazuello disse que aceitou o convite feito por Bolsonaro por ter com ele “laços de respeito e camaradagem”, malgrado o fato óbvio de que se tratava de comício – o que, por definição, deveria ter desestimulado sua participação.
No processo, consta que o general Paulo Sérgio confirmou ter sido avisado pelo subordinado, mas não o que respondeu a ele. Nem precisava. A participação de Pazuello no ato, com direito a discurso em cima de um carro de som, é a evidência de que o intendente decerto não foi dissuadido pelo então comandante do Exército.
Registre-se que a maioria dos membros do Alto Comando do Exército defendeu a punição exemplar de Pazuello. A presença de um oficial da ativa naquele comício, uma transgressão militar inquestionável, era um ultraje à história de respeito às leis e à Constituição construída pelas Forças Armadas desde a redemocratização, além de configurar quebra da hierarquia e da disciplina, balizas da vida castrense. Entretanto, prevaleceu a vontade do general Paulo Sérgio. Pudera. Como punir Pazuello se, na véspera, o transgressor avisara seu comandante de que iria transgredir as normas militares e nada foi feito para impedi-lo?
Tentando justificar o injustificável para absolver Pazuello, o general Paulo Sérgio, que mais tarde se tornaria ministro da Defesa de Bolsonaro, concluiu que o discurso do intendente no trio elétrico não teve, ora vejam, “viés político-partidário” – como se oferecer apoio explícito ao então presidente da República diante de possíveis eleitores, que era ao que se prestavam as tais e frequentes “motociatas” de Bolsonaro, não fosse um ato político por definição.
A CGU acertou ao levantar o sigilo sobre o processo porque, a um só tempo, explicitou a anatomia de uma delinquência hermenêutica, cometida com o claro propósito de acobertar infrações militares irrefutáveis, e restabeleceu o princípio constitucional da transparência. Numa República democrática, como o Brasil, a regra é a transparência; sigilo sobre informações de interesse público só vale para casos excepcionalíssimos, definidos por lei e pela Constituição. Não era o caso da indisciplina do intendente Pazuello nem do acobertamento de seu comando na época.
Esse lamentável episódio é revelador de quão fundo foi o buraco em que parcela das Forças Armadas se dispôs a descer em nome de um desqualificado como Jair Bolsonaro.