A anatomia de uma desfaçatez

By | 27/02/2023 7:17 am

Fim do sigilo sobre o processo militar contra Pazuello expõe a delinquência hermenêutica que o gestou e o quão baixo alguns militares desceram por um desqualificado como Bolsonaro

(OPINIÃO DO ESTADÃO, em 27/02/2023)

Imagem ex-libris

A rigor, nada havia a apurar, só a punir. As imagens do comício, com Bolsonaro e Pazuello discursando em cima de um trio elétrico, falavam por si sós. À época, Pazuello, hoje deputado federal, era oficial da ativa, e tinha encerrado sua catastrófica passagem pelo Ministério da Saúde havia dois meses.

Militares da ativa, como sabe qualquer manga-lisa, são expressamente proibidos de participar de atos políticos. A razão para essa vedação é tão óbvia que seria um desrespeito ao leitor destacá-la. Entretanto, o Exército não apenas livrou Pazuello de qualquer punição, em afrontosa violação da Constituição e do Estatuto dos Militares, como ainda impôs sigilo de 100 anos sobre o processo.

Se esse sigilo, per se, já era uma aberração, a razão que o motivou é uma das maiores vergonhas para o Exército. Como agora sabemos, de fato, nada foi apurado. O que houve foi uma deliberada operação de acobertamento de evidente transgressão militar, tão evidente que basta para explicar a tentativa de mantê-la em segredo por nada menos que um século.

Como se lê no documento agora tornado público, Pazuello, ciente de que estava prestes a violar a Constituição e o Estatuto dos Militares, teve o “cuidado”, digamos assim, de avisar o então comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, com um dia de antecedência, de que compareceria ao ato político convocado por Bolsonaro. Em depoimento, Pazuello disse que aceitou o convite feito por Bolsonaro por ter com ele “laços de respeito e camaradagem”, malgrado o fato óbvio de que se tratava de comício – o que, por definição, deveria ter desestimulado sua participação.

No processo, consta que o general Paulo Sérgio confirmou ter sido avisado pelo subordinado, mas não o que respondeu a ele. Nem precisava. A participação de Pazuello no ato, com direito a discurso em cima de um carro de som, é a evidência de que o intendente decerto não foi dissuadido pelo então comandante do Exército.

Registre-se que a maioria dos membros do Alto Comando do Exército defendeu a punição exemplar de Pazuello. A presença de um oficial da ativa naquele comício, uma transgressão militar inquestionável, era um ultraje à história de respeito às leis e à Constituição construída pelas Forças Armadas desde a redemocratização, além de configurar quebra da hierarquia e da disciplina, balizas da vida castrense. Entretanto, prevaleceu a vontade do general Paulo Sérgio. Pudera. Como punir Pazuello se, na véspera, o transgressor avisara seu comandante de que iria transgredir as normas militares e nada foi feito para impedi-lo?

Tentando justificar o injustificável para absolver Pazuello, o general Paulo Sérgio, que mais tarde se tornaria ministro da Defesa de Bolsonaro, concluiu que o discurso do intendente no trio elétrico não teve, ora vejam, “viés político-partidário” – como se oferecer apoio explícito ao então presidente da República diante de possíveis eleitores, que era ao que se prestavam as tais e frequentes “motociatas” de Bolsonaro, não fosse um ato político por definição.

A CGU acertou ao levantar o sigilo sobre o processo porque, a um só tempo, explicitou a anatomia de uma delinquência hermenêutica, cometida com o claro propósito de acobertar infrações militares irrefutáveis, e restabeleceu o princípio constitucional da transparência. Numa República democrática, como o Brasil, a regra é a transparência; sigilo sobre informações de interesse público só vale para casos excepcionalíssimos, definidos por lei e pela Constituição. Não era o caso da indisciplina do intendente Pazuello nem do acobertamento de seu comando na época.

Esse lamentável episódio é revelador de quão fundo foi o buraco em que parcela das Forças Armadas se dispôs a descer em nome de um desqualificado como Jair Bolsonaro.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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