Quando um Poder atropela a Constituição e invade a competência de outro a pretexto de resolver um problema social, não se resolve o problema e ainda se criam novos
Caso recente foi a determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para que União, Estados e municípios adotassem uma série de medidas para a população em situação de rua. Mais do que averiguar se ele tinha competência jurisdicional para proferir tal decisão, o fundamental – como muitos postularam – seria o reconhecimento da gravíssima situação humana e social, a demandar uma atuação excepcional do poder público. Lembrar a necessidade de o juiz ater-se às suas atribuições institucionais seria, no caso, quase uma agressão à humanidade das pessoas em situação de rua, uma indiferença com esse drama humanitário. Similar raciocínio é aplicado a muitas outras áreas, como o combate à corrupção e o fomento da educação.
O alerta faz-se necessário. No Estado Democrático de Direito, a distribuição de competências entre os Poderes e órgãos públicos não é apenas por uma divisão de poder, o que é, por si só, uma razão importante. No regime democrático, não há poderes ilimitados. Existe, no entanto, outro motivo, igualmente significativo. A atribuição de competências específicas para cada órgão estatal obedece a uma razão de eficácia.
Só respeitando as atribuições institucionais é que o poder público pode ser realmente eficaz na resolução dos problemas sociais e econômicos. É muito bonita uma decisão judicial impondo uma série de obrigações a todos os entes federativos em relação ao cuidado com a população em situação de rua. Parece, à primeira vista, que ela proporcionou um avanço na compreensão desse grave problema social, bem como na disposição de enfrentá-lo. No entanto, a medida é utópica, sem apoio na realidade, a começar pela falta de condições do STF para acompanhar o cumprimento dessa decisão pelos 27 Estados da Federação e pelos 5.568 municípios brasileiros.
A ter em conta o teor da decisão de Alexandre de Moraes, o STF passa a ser o revisor de todas as políticas públicas da União, dos Estados e dos municípios em relação à população em situação de rua. Tal centralização na Corte, comemorada por alguns como o reconhecimento da relevância do tema, é absolutamente disfuncional, tanto para o funcionamento do Supremo – cuja estrutura é incapaz de fazer a gestão desses casos – como para a proteção das pessoas em situação de rua. Mais do que levar todos os casos para Brasília, a efetividade dos direitos é obtida, entre outros meios, pela capilaridade do sistema de Justiça, que deve estar próximo das pessoas.
O Estado Democrático de Direito é incompatível com soluções “para inglês ver”. Por sua própria razão de ser, ele tem um compromisso com a efetividade dos direitos. Por isso, medidas salvacionistas, que pretendem resolver questões complexas com uma canetada, são inadequadas. Além de descumprirem as competências constitucionais – quase sempre há violação ao princípio federativo e intromissão na seara do Congresso, o que gera déficit de legitimidade democrática –, elas são enganosas. Prometem o impossível. Basta pensar na falácia, muito difundida nos tempos de Lava Jato, de que a 13.ª Vara Federal de Curitiba – uma vez alçada à condição de “juízo universal de combate à corrupção”, como alertou certa vez Alexandre de Moraes – seria capaz de limpar e renovar toda a política nacional.
Advertir a respeito da incompetência jurisdicional de um juiz na fixação de políticas públicas para a população em situação de rua em todo o País não é ignorar esse grave problema social. É o contrário. Trata-se de não se iludir com soluções mágicas – e ineficazes. O tempo é curto. E os direitos das pessoas, valiosos. O tema tem de ser enfrentado responsavelmente.
Comentário nosso
Se os Poderes da República funcionassem adequadamente não seria necessário viverem se atropelando. Como um pai antigamente se fazia obedecer com um simples olhar, bastava uma simples manifestação popular, da imprensa ou de um orador no Congresso para fazer com que fosse corrigido o que não está funcionando a contento. A manifestação da Justiça nunca devia se fazer necessário para que o Poder Executivo ou o Poder Legislativo cumprissem as suas missões. Quando se faz necessário esta manifestação, é por que a Democracia não está funcionando adequadamente. Tem pois razão o Estadão no seu estranhamento e na sua manifestação. (LGLM)