Texto de Millor Fernandes escrito há 24 anos. Veja quanto continua atual!

By | 17/08/2023 10:54 am

Olha aqui eu, Mamita, onde é quistou

(Millor Fernandes, no Estadão, em 20/06/1999)

Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988.

Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa – já ouviram essa?

Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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