Tratar como criminosa a mulher é uma violação de sua dignidade
(Joel Pinheiro da Fonseca, na Folha, 25/09/2023)
Não são braços nem pernas, boca nem olhos, que fazem um ser humano. Uma pessoa pode perder todos eles e continuará pessoa. Mas se perder seu cérebro, não. Isso porque as características que nos fazem pessoas —capacidade de ter sensações, emoções, pensamento— vêm do sistema nervoso.
Desde o momento da concepção, o embrião já é um organismo distinto da mãe, mas não é ainda uma pessoa. Só terá sensações como dor e prazer em estágios posteriores da gestação. Ele tem o potencial de se tornar uma pessoa (ou mesmo duas se o embrião se dividir), mas ainda não o é. Se tem ou não uma alma imortal foge ao Estado laico. Por isso, não deve receber a mesma proteção da lei.
A própria lei brasileira já não entende a vida do embrião como equivalente ao ser humano já formado. Primeiro, porque a pena para o aborto é menor do que para homicídio. Segundo, porque permite o aborto em caso de estupro da mãe. Seria monstruoso permitir o assassinato de um ser humano inocente por causa do crime de seu genitor.
Não é só a lei. Ninguém na sociedade considera, a sério, que um embrião ou um feto nos estágios iniciais seja já um ser humano. É simples mostrar isso. No Brasil, temos clínicas de fertilização in vitro (FIV). Nessas clínicas, embriões são criados em laboratório, alguns são transferidos para o útero da mulher e outros são congelados. Depois de um prazo estipulado em lei, esses são descartados ou destinados à pesquisa. Mesmo sabendo disso, seguimos nossas vidas normalmente. Nem o mais ardoroso oponente do aborto legal tenta impedir o “assassinato” daqueles embriões congelados. No máximo, uma ínfima minoria permanece na oposição puramente verbal à prática.
É fato que mulheres que querem ser mães no momento em que engravidam constroem uma relação com seu filho desde o estágio embrionário. Mas essa construção diz muito mais sobre os adultos e suas expectativas do que sobre a realidade atual daquele organismo. Amam-no já pelo que ele será; dão-lhe um nome e atribuem a ele uma personalidade.
Mesmo a mulher que não quer engravidar sente todo o peso da culpa que a cultura introjeta na recusa daquele embrião e da incerteza quanto àquela escolha. Por isso quase nenhum aborto é uma decisão fácil. Que 67% das mulheres que abortam já sejam mães (Pesquisa Nacional do Aborto, 2021) mostra como não há contradição essencial entre uma coisa e outra.
Tratar como criminosa a mulher que acabou de tomar uma decisão dolorosa, por vezes sendo denunciada pelo médico que tem que curá-la das consequências de um aborto malfeito devido a seu caráter ilegal e ainda forçá-la a responder à polícia e à Justiça. Tudo isso é uma violação de sua dignidade, justificada em nome de uma abstração que ninguém leva a sério na prática.
A criminalização do aborto ameaça a vida, a dignidade e o bem-estar de todas as mulheres, especialmente das mais vulneráveis. Antes de 12 semanas, não há a menor questão de se estar lidando com uma vida humana, com uma pessoa. Sendo assim, descriminalizar sua prática é uma garantia de direito básico das mulheres. É da alçada do Supremo, portanto, decidir sobre essa questão, como no passado já decidiu sobre o aborto de fetos anencéfalos.
Comentário nosso
O Supremo Tribunal Federal é o Guardião da Constituição. A sua função é corrigir qualquer tentativa do Executivo ou do Legislativo de praticar qualquer ato que afronte a Constituição. E nesta questão ele é a última instância. A própria Constituição garante esta função de guardá-la aos Ministros que ocupam o STF. Enquanto presidente da república e deputados têm apenas quatro anos de mandato e senadores apenas oito, o ministro do STF, dependendo da idade em que foi escolhidos pode ficar no Supremo até os 75 anos se assim o desejar, o que pode lhe garantir vinte/trinta anos de exercício do cargo. A lei que o Supremo pode modificar sobre o aborto, já tem oitenta anos. (LGLM)