Essa união dos cidadãos para reaver um direito político elementar e recuperar o valor de sua moeda, com o fim da hiperinflação, não surgiu por geração espontânea nem de longe foi obra do acaso. Tampouco derivou de diferenças essenciais entre o povo brasileiro de então – meados das décadas de 1980 e 1990, respectivamente – e o de hoje. O povo brasileiro segue o mesmo, com todas as suas potências e limitações.
O que, então, houve de diferente na mobilização da sociedade para superar um dos últimos resquícios da ditadura militar e para derrotar a inflação que havia décadas corroía a renda dos brasileiros, ampliava desigualdades e, como se não bastasse, desviava a atenção da Nação de outras questões tão ou mais graves? A resposta é simples: líderes políticos à altura dos desafios de seu tempo.
A redemocratização do País e, consequentemente, a retomada do direito de voto direto para a Presidência da República decorreram de um longo processo de negociações políticas e engajamento social que decerto teria outro desfecho não fossem a liderança e o espírito público de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso, entre outros, àquela época.
De igual modo, o Brasil dificilmente teria vencido a hiperinflação sem que Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso tivessem a visão digna de estadistas de que aquele problema obstava o enfrentamento de todos os outros. E não só: sem que ambos os presidentes tivessem sido capazes de montar uma equipe altamente qualificada, dadas as credenciais técnicas e republicanas de seus membros, para auxiliá-los naquela faina. Destaca-se, por fim, a capacidade de comunicação de Fernando Henrique para dialogar com todos os cidadãos em termos compreensíveis, a fim de dar-lhes a dimensão do desafio a ser enfrentado e dos sacrifícios que haveriam de ser feitos em nome daquele objetivo coletivo.
As eleições indiretas e a hiperinflação ficaram para trás e, neste ano, a sociedade tem razões de sobra para celebrar ambas as conquistas: há eleições livres e periódicas no País e a inflação já não assombra os brasileiros como há mais de três décadas. Isso não significa, por óbvio, que não haja desafios tão ou mais prementes do que aqueles a demandar, hoje, a atenção coletiva. Desigualdades persistem em níveis obscenos, malgrado avanços pontuais nos últimos anos. A educação pública segue negligenciada, em particular o ensino básico. O medo da violência paralisa quase todos os brasileiros. A lista é longa.
O que parece não haver mais são estadistas imbuídos de um interesse genuíno de, mais uma vez, unir os brasileiros e concertar soluções para cada uma dessas mazelas. Os dois presidentes mais populares da história recente do País, Lula da Silva e Jair Bolsonaro, vivem de insuflar a cizânia entre os brasileiros, fazendo crer, cada um a seu feitio, que adversários políticos são inimigos a serem alijados do debate público. Ao contrário de unir os cidadãos em torno de propósitos comuns, tanto Lula como Bolsonaro reforçam o tribalismo – a união entre os que veem o País e o mundo pelas mesmas lentes – e a exclusão de quem pensa diferente.
Não haverá progresso enquanto novas lideranças não se erguerem inspiradas por espírito público e senso de união; e os cidadãos se deixarem seduzir pelo discurso populista, agrupando-se em identidades políticas estreitas e inflexíveis. Tanto pior no contexto em que crenças particulares, cada vez mais, se sobrepõem à verdade factual.