Governo teme migração em massa de prefeituras para o INSS e rombo maior
Ministério alerta que corte da alíquota em desoneração pode agravar disparidade entre prefeituras com regimes próprios
A disposição do Congresso em cortar a alíquota de contribuição das prefeituras ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) acendeu um alerta dentro do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o risco de migração em massa de municípios que hoje mantêm regimes próprios de Previdência.
Eventual transferência de servidores municipais para o regime geral poderia aprofundar o déficit do INSS, que em 2023 fechou em R$ 311,3 bilhões —ou R$ 283,6 bilhões, descontado o pagamento extraordinário de precatórios represados de anos anteriores.
O temor existe porque o Congresso aprovou uma lei que reduz de 20% para 8% a contribuição patronal dos municípios com até 156,2 mil habitantes. A medida foi vetada por Lula, mas foi restabelecida pelos parlamentares.
Na sequência, o governo editou uma MP (medida provisória) para revogar o benefício, considerado inconstitucional pela área jurídica do Executivo. A iniciativa, porém, enfrenta resistências de deputados e senadores e é ainda alvo de negociações.
Nesses municípios, a alíquota patronal normal oscila entre 11% e 31%, com uma média de 16,5%. No entanto, o déficit atuarial —jargão técnico para o dado que sinaliza a falta de dinheiro suficiente para cobrir o pagamento de benefícios no futuro— obriga cerca de metade das prefeituras a arcar com alíquotas suplementares que vão de 0,1% a 153,7% sobre a folha (em média, 18,5%).
Embora no curto prazo a migração possa elevar receitas do INSS, no futuro o rombo será maior com o pagamento de mais aposentadorias.
“Antes mesmo da decisão do Congresso Nacional, passamos todo o ano passado recebendo prefeitos para saber se haveria Refis [refinanciamento de dívidas] alongado, de 240 meses, outros querendo fazer a conta se valeria a pena migrar para o RGPS”, disse à Folha o secretário do Regime Geral de Previdência Social, Adroaldo da Cunha Portal.
A CNM (Confederação Nacional dos Municípios) afirmou que o argumento do governo é uma “manobra” para adiar a discussão da contribuição previdenciária das prefeituras enquanto propõe um modelo intermediário de cobrança, baseado em renda per capita, nível de população ou riqueza —todos rejeitados pela entidade.
Segundo avaliação preliminar do governo, 1.950 municípios com regimes próprios de Previdência (91% do total) são mantidos por cidades com até 156,2 mil habitantes e poderiam se beneficiar da alíquota reduzida do INSS em caso de migração.
Eventual transferência não iria eximi-las de compromissos, como pagar ao INSS tudo o que já foi recolhido para aquele grupo de segurados (a chamada compensação previdenciária) ou arcar com benefícios já concedidos pelo regime próprio.
Mas técnicos reconhecem que essas obrigações só teriam impacto no caixa dos municípios a médio e longo prazo. Em outras palavras, a mudança de regime poderia ser atrativa para prefeitos interessados em sair de uma situação de pressão e obter um fôlego de curto prazo.
Nesse horizonte, a migração traria, de fato, um alívio. Além de reduzir a alíquota normal para os 8% aprovados pelo Legislativo, as prefeituras poderiam reduzir ou até extinguir as cobranças suplementares. O dinheiro ficaria livre para custear outras políticas públicas.
O que preocupa o governo federal é que alguém precisará pagar essa conta no futuro. A arrecadação do INSS ficaria menor para um montante de obrigações cada vez maior. O desequilíbrio acentuado das contas da Previdência exigiria um esforço fiscal ainda maior da União.
A mudança também traria repercussões relevantes para os servidores municipais.
No caso de um funcionário que trabalhou a vida inteira para a prefeitura e nunca contribuiu para o INSS, a migração de regime o jogaria na regra definitiva para aposentadoria aprovada na reforma da Previdência —isto é, idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, sem direito à transição.
O grande número de implicações levou a Secretaria do Regime Próprio e Complementar, ligada ao MPS, a elaborar uma cartilha para conscientizar as prefeituras sobre a “bomba-relógio” que seria a extinção dos fundos atuais. Tal decisão seria irrevogável, já que a reforma proibiu a criação de novos sistemas locais.
Para a CNM, o pagamento da compensação e a repercussão sobre a vida dos servidores já seriam motivos de sobra para desencorajar a migração.
“Não existe hipótese real de o município fazer isso. O governo está, mais uma vez, manobrando por algo favorável a ele e atrasar a ajuda aos municípios”, disse o presidente da entidade, Paulo Ziulkoski.
Mesmo sem migração, o governo avalia que a alíquota patronal menor no INSS pode incentivar contratações temporárias (vinculadas ao regime geral) em detrimento de concursos públicos (cujos servidores ingressariam no regime próprio).
CONGRESSO SENSÍVEL A DEMANDAS QUE PRESSIONAM PREVIDÊNCIA
O secretário do RGPS afirmou que a desoneração das prefeituras, embora seja uma reivindicação legítima dos municípios, é exemplo de como o Congresso se mostra cada vez mais sensível a demandas de grupos por vantagens no âmbito da Previdência.
O ministério monitora o andamento de propostas que podem conceder privilégios a determinadas categorias.
Um dos projetos, aprovado em maio de 2023 no Senado, pretende estender a guardas municipais e outras categorias o direito a aposentadoria especial. Outra iniciativa propõe um abono anual (14º salário) para aposentados e pensionistas do INSS.
Há ainda uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que cria aposentadoria especial para agentes comunitários de saúde.
No sistema previdenciário, se um grupo pode pagar menos ou se aposentar mais cedo, isso significa maior custo e menor arrecadação no futuro, gerando pressão por novas reformas.
“A preocupação sempre manifestada nas notas técnicas da secretaria vai no sentido de alertar para o risco de conceder regras especiais diferenciadas para categorias específicas. Isso tem um impacto atuarial na Previdência sempre preocupante”, afirmou Portal.
“À medida que governos com viés mais fiscalista decidem fazer reforma da Previdência, o corte acaba depois vindo para cima de quem tinha um cálculo atuarial adequado e contribuiu ao longo de 35 anos”, disse.