Nos últimos anos, uma série de estudos vem demonstrando de forma contundente os problemas associados ao uso de bebidas alcoólicas
Há pouco mais de um ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma declaração no The Lancet Public Health em que afirmava que quando se trata de consumo de álcool, não existe quantidade segura da bebida que não afete a saúde – por mais que possam existir alguns supostos benefícios (até muito recentemente afirmava-se que beber uma taça de vinho por dia ajudava a proteger o coração), os malefícios do álcool são maiores e aumentam os riscos de várias doenças, entre elas o câncer.
O Brasil não tem uma diretriz específica sobre o tema, mas o consenso sugere seguir as recomendações da OMS. Com o aumento das evidências científicas mostrando os problemas do álcool, cada vez mais médicos e profissionais da saúde evitam incentivar o consumo de álcool mesmo entre aqueles que não são bebedores recorrentes e especialmente entre adolescentes, já que há estudos mostrando que quanto antes começamos a beber, maior o risco de nos tornarmos bebedores compulsivos.
Assim, se levarmos à risca a orientação da OMS, até mesmo a clássica mensagem “beba com moderação” deveria deixar de ser usada.
“A verdade é que nunca houve um limite seguro para consumo de álcool porque cada pessoa metaboliza o álcool de uma maneira diferente. Por isso, não é possível dizer qual dose é segura para uma pessoa e não para outra”, afirma a psiquiatra Patrícia Hochgraf, coordenadora do Promud (Programa da Mulher Dependente Química), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Segundo Patrícia, são muitas variáveis que influenciam nos riscos: o gênero (mulheres absorvem e metabolizam o álcool de maneira diferente dos homens); a idade (os adolescentes têm mais riscos); se fez cirurgia bariátrica ou não; se a pessoa tem algum problema prévio no fígado ou não; se tem alguma predisposição genética (existe um componente hereditário para se tornar alcoolista) e até mesmo a altura.
“São tantos fatores que interferem que não podemos generalizar e afirmar que determinada quantidade de álcool é segura ou não”, emenda a psiquiatra.
Os conceitos básicos do que é beber muito incluem: beber por um período mais longo do que o pretendido; quando existe esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso de álcool; fissura (forte desejo ou necessidade de beber); uso recorrente a ponto de afetar o desempenho no trabalho ou em casa; abandono ou redução de atividades sociais e profissionais em decorrência do uso do álcool; entre outros. “Quando a pessoa tem dois entre esses fatores, chamamos de transtorno por uso de álcool”, explica a médica.
Massa de evidências científicas
Na avaliação do psiquiatra Guilherme Messas, professor da Santa Casa de São Paulo e membro da ACT Aliança Promoção à Saúde, uma organização da sociedade civil voltada para o desenvolvimento de políticas públicas em saúde, cada vez menos se fala em consumo seguro de álcool porque uma série de evidências científicas vem demonstrando os problemas de decorrentes da ingestão de bebidas alcoólicas.
Messas ressalta que a construção de evidências científicas demora muito para ser feita de forma robusta e determinante. Mesmo com vários estudos anteriores apontando os problemas do álcool, ele diz que foi somente a partir do segundo semestre de 2018 que se acendeu um alerta realmente impactante sobre o tema. Na ocasião, uma ampla revisão de estudos feita por pesquisadores americanos e publicada na revista científica The Lancet concluiu que não havia limite seguro para a ingestão da bebida. Os cientistas analisaram o consumo de álcool e suas repercussões em mais de 100 mil pessoas de 195 países entre 1990 e 2016.
“Demoramos quase 30 anos para suspeitar da relação do câncer com o tabagismo e mais uns 20 anos para conseguir demonstrar essa associação com clareza. Os pequenos estudos que indicavam alguma correlação eram pouco valorizados. Com o álcool enfrentamos o mesmo problema, especialmente por causa da influência da indústria. Já existiam publicações anteriores, mas esse estudo de 2018 apresentou de uma maneira muito consistente, do ponto de vista de saúde pública, que não é possível falar em beber seguro, assim como não existe fumar seguro”, afirma Messas.
A prática é diferente do estudo
Apesar do resultado do estudo ser tão contundente ao comprovar os riscos do álcool, transformar esses achados em alguma medida prática é muito mais difícil. Isso porque aqui, no Brasil, o álcool é consumido de forma recreativa e não existem definições oficiais e medidas específicas sobre o que seria uma dose padrão para considerar um consumo seguro de álcool.
PUBLICIDADE
A referência de dose mais utilizada é a divulgada pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), que considera que uma dose (unidade) padrão de álcool correspondente a 14 g de etanol puro – isso equivale a beber, por exemplo, cerca de 350 ml de cerveja (uma lata); 150 ml de vinho ou 45 ml de destilados (como vodca, cachaça ou uísque).
A OMS, no entanto, usa como dose padrão o equivalente a 10 g de álcool e recomenda o máximo de duas doses por dia para homens e uma por dia para mulheres, desde que se abstenham de beber pelo menos duas vezes na semana.
Patrícia ressalta que estabelecer um limite de gramatura para o beber compulsivo é necessário para os estudos científicos terem uma base concreta e para estipular medidas como a dosagem do bafômetro. “Eu não posso falar que quem bebe uma taça de vinho por semana é um bebedor compulsivo. Por isso, preciso colocar um limite arbitrário do que é beber compulsivo”, diz.
Começar a beber ainda na adolescência também é um fator de risco para o beber compulsivo e o desenvolvimento do transtorno por uso de álcool. Quanto mais cedo começar a beber excessivamente (o suficiente para ter problemas), maior o risco.
“Ninguém defende o consumo de álcool por adolescentes, mas eles querem usar, a verdade é essa. Mas faltam modelos mais eficientes de prevenção e educação, isso ajudaria muito”, avalia o psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Cisa.
Proibir é solução?
Estima-se que 10% da população mundial terá problemas com o consumo de álcool, ou seja, para 90% das pessoas a bebida não será um problema – por isso a proibição não é a melhor solução.
“Tirar o álcool de 90% das pessoas que não têm problema é complicado, porque ele é uma substância recreativa. É diferente de proibir o cigarro porque pouquíssimas pessoas fumam um cigarro de vez em quando. Quem fuma, fuma. Mas as pessoas podem beber de vez em quando e não ter prejuízo nenhum. Trata-se muito mais de ensinar a fazer o uso responsável do que proibir o consumo”, avalia a psiquiatra Patrícia.
Para Messas, não é preciso proibir o uso de álcool, mas é preciso abandonar a ideia de “consumo moderado” porque não existe o uso seguro da substância. “De onde surgiu a frase ‘beba com moderação’? Da propaganda da própria indústria do álcool. Não existe beber com moderação, o que existe é mensuração de risco. É impossível dizer que não haverá impacto com o álcool com uma dose que seja”, diz ele, que defende mais restrições e taxações das bebidas alcoólicas.