A maior dívida social do Brasil (com comentário nosso)

By | 28/02/2024 6:43 pm

O Marco do Saneamento abriu um leque de possibilidades de investimento. Mas o poder público, o maior responsável por perpetuar essa chaga civilizacional, ainda precisa fazer mais

(Opinião do Estadão, em 28/02/2024)
Imagem ex-librisO Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e nada expõe mais essa desigualdade do que o acesso à água e ao esgoto.

Segundo o Censo do IBGE, com dados de 2022, quase 50 milhões de brasileiros, 1/4 da população, não têm coleta de esgoto. Quase 40 milhões despejam seus dejetos em fossas rudimentares ou buracos e cerca de 4 milhões em rios, lagos ou no mar. Mais de 6 milhões de brasileiros não têm acesso à água e dependem de caminhões-pipa ou água da chuva, rios ou açudes sem o devido tratamento. Mas o problema pode estar subestimado: pelos critérios do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, de 2022, são 93 milhões de brasileiros (44%) sem coleta de esgoto e 33 milhões (15%) sem água tratada.

Os números do IBGE escancaram ainda a desigualdade regional. No Norte e no Nordeste, respectivamente, só 46% e 58% da população têm coleta de esgoto.

Para adicionar insulto à injúria, 1,2 milhão de crianças, segundo o Censo Escolar do Inep, estudam em colégios sem acesso à água potável.

Além da incidência de doenças relacionadas diretamente à exposição a ambientes sem saneamento (leptospirose, disenteria, tifo, cólera), a falta de saneamento impacta o meio ambiente, a produtividade do trabalho, o rendimento escolar, os valores imobiliários e o turismo. Segundo o Instituto Trata Brasil, a universalização do saneamento básico proporcionaria um retorno de R$ 1,125 trilhão nas próximas duas décadas.

Essa tragédia humanitária não é uma consequência natural da realidade socioeconômica do Brasil – o saneamento no País está bem abaixo da média de outros países de renda média-alta e mesmo de renda média. Portanto, é só incúria, pura e simples, do poder público.

Diferentemente de outros setores – como energia, telecomunicações e, em alguma medida, transportes –, que foram transformados por reformas que abriram os mercados nos anos 90, o saneamento permaneceu por mais duas décadas sob o modelo do monopólio estatal, à mercê da voracidade clientelista e corporativista. Não é uma coincidência que justamente nos Estados do Norte e Nordeste, onde esse modelo prevalece, o saneamento é mais periclitante.

O Marco do Saneamento, aprovado em 2020, buscou reverter esse quadro, definindo metas para a universalização, obrigando a licitação para a escolha dos prestadores, garantindo mais segurança jurídica à privatização das companhias estaduais, estimulando a prestação regionalizada de serviços e conferindo à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) o papel de padronizar a regulação e a fiscalização dos serviços.

Os resultados já se fazem sentir. Segundo as projeções da Carta de Infraestrutura da consultoria Inter.B, os investimentos totais em saneamento, que em 2022 somaram R$ 21,1 bilhões, devem chegar em 2024 a R$ 30,4 bilhões. A concorrência do setor privado deu inclusive um impulso ao investimento de algumas grandes empresas estatais. Ainda assim, para universalizar os serviços até 2033, será preciso atingir uma média anual de R$ 50 bilhões.

Tudo isso apesar dos tremores causados pelas tentativas do atual governo, frustradas pelo Congresso, de reverter as regras do Marco, restaurando privilégios obscenos e inconstitucionais das estatais.

Ainda há muito a fazer. A ANA ainda precisa regulamentar o sistema de prestação regional que viabilizará o chamado modelo “filé com osso” de contratos casados entre grandes municípios altamente rentáveis (o filé) e aqueles desprovidos de capacidade técnica e financeira (o osso). O Congresso ainda precisa regulamentar os regimes de exceção na reforma tributária, com o potencial de reduzir tarifas de serviços essenciais, como o saneamento. Investimentos mais substantivos podem ser destravados com formatos bem estruturados de concessões, PPPs ou venda de participação acionária. Fundamental é uma política fiscal crível e sustentável para melhorar a nota do País junto às agências de classificação de risco.

São medidas que devem estar no rol de prioridades máximas dos Três Poderes, nas instâncias federal, estaduais e municipais, se esta geração quiser sanar a maior chaga civilizacional da história brasileira.

Comentário nosso

A gradessissima maioria do político brasileiro não está preocupado com o interesse público. Ele quer “botar no bolso” uma parte das verbas que conseguiu e aparecer bem nas inaugurações. Saneamento fica enterrado e amanhã não se sabe quem fez. Por isso o político brasileiro não tem interesse em saneamento. Quem proporcionou a água que abastece Patos? Quem fez os esgotos de Patos? Água e esgoto não dá nome a ninguém. Estrada, canal, ponte ficam visíveis e têm placas. Água e saneamento não tem placa. (LGLM)

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Category: Nacionais

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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