Farda não é licença para matar

By | 03/03/2024 7:04 am
Imagem ex-librisComeçou mal no Superior Tribunal Militar (STM) o julgamento dos oito militares do Exército que fuzilaram dois homens inocentes em Guadalupe, zona norte da cidade do Rio, durante a intervenção federal na segurança pública do Estado, em 7 de abril de 2019. Conhecidos os votos dos ministros relator e revisor do caso na Corte, o que se tem até o momento é a prevalência do espírito de corpo sobre a imperiosa necessidade de punir um crime brutal com o máximo rigor.

Na ocasião, convém recordar, uma patrulha comandada pelo tenente Ítalo Nunes disparou nada menos que 257 tiros de fuzil na direção do carro em que viajavam o músico Evaldo Rosa, sua mulher, seu sogro, o filho menor do casal e uma amiga – todos a caminho de um chá de bebê. Diante do desespero da família ao constatar que Evaldo fora atingido pela saraivada de balas, Luciano Macedo, um catador de recicláveis que trabalhava no local, correu em socorro das vítimas e também foi morto.

Tão bárbaro foi o crime – revelador da temeridade que é dar às Forças Armadas a missão de servir como polícia em ações de segurança pública – que, em 2021, a Justiça Militar de primeira instância condenou o tenente Nunes a 31 anos e 6 meses de prisão. Seus sete subordinados foram condenados a pena um pouco menor: 28 anos de cadeia cada um. Todos em regime fechado. O advogado dos réus recorreu, alegando que os militares agiram em “legítima defesa”, e o caso chegou ao STM.

Em Brasília, o ministro relator, Carlos Augusto Oliveira, acolheu o argumento da defesa. O ministro votou pela absolvição dos réus pela morte de Evaldo Rosa e pela desclassificação de homicídio doloso para homicídio culposo no caso de Luciano Macedo, o que reduziu drasticamente as penas impostas ao tenente Nunes (3 anos e 7 meses de prisão) e aos seus subordinados (3 anos de prisão) – e todos em regime aberto. O voto do relator foi seguido pelo ministro revisor, José Coêlho Ferreira.

A versão segundo a qual os militares comandados pelo tenente Nunes não tiveram a intenção de matar Evaldo e Luciano chega a ser ofensiva à inteligência alheia, à memória das vítimas e aos sentimentos de seus familiares. Uma tempestade de chumbo na direção de um carro – dos 257 tiros de fuzil, 80 atingiram o veículo – não se presta à advertência nem à defesa, sobretudo quando se sabe que do carro da família não partiu tiro algum.

Evaldo e Luciano, segundo os dois ministros do STM que votaram até agora, foram atingidos no momento em que os militares trocavam tiros com criminosos, após tentarem impedir um assalto. “Infelizmente, durante o embate com os assaltantes, um dos projéteis atingiu o veículo do sr. Evaldo Rosa, causando uma das lesões que pode ter o levado à morte naquele instante”, disse o ministro relator em seu voto. O carro, então, teria parado e uma segunda rajada de balas foi disparada, desta vez matando Luciano Macedo.

A perícia constatou que Evaldo Rosa recebeu nove tiros de fuzil. Mas, para o relator do processo no STM, a causa da morte do músico teria sido o primeiro tiro – disparado, portanto, no contexto da “legítima defesa” durante a suposta retaliação aos assaltantes. Nesse sentido, o magistrado chegou à conclusão que acusar os militares por homicídio doloso seria um “crime impossível”, haja vista que Evaldo já estaria morto quando os militares abriram fogo pela segunda vez e, ao fim e ao cabo, atingiram o catador de recicláveis, sem a intenção de matá-lo.

Roga-se aos demais ministros do STM que revertam esse entendimento que, a um só tempo, desmoraliza a Justiça Militar e impinge mais sofrimento aos familiares das vítimas. Na prática, está-se tratando Evaldo e Luciano como dois azarados. O desdém com que suas vidas foram tratadas por dois ministros da mais alta instância da Justiça Militar se desvela como espécie de punição post mortem, simplesmente por estarem “no lugar errado, na hora errada”.

A prevalecer a impunidade, os brasileiros terão razão de sobra para sentir medo sempre que cruzarem o caminho de uma patrulha de militares.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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