Felizmente, certos delírios lulopetistas foram substituídos, neste caso, pela maturidade. Governos não são eleitos para instigar desavenças. Chefes de Estado não devem espalhar brasas onde já existe fogo e tensão. Num país cindido pela polarização, a preservação do equilíbrio entre grupos e instituições é fundamental para a democracia. É o que está em jogo. Isso é ainda mais verdadeiro diante da frágil estabilidade entre o governo lulopetista e os militares, aguçada pelo 8 de Janeiro e a investigação sobre o possível envolvimento de integrantes das Forças Armadas na aventura golpista que cogitou impedir a posse de Lula e estender o mandato de Jair Bolsonaro.
Lula e o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, vêm acertadamente buscando promover uma acomodação, depois de um período de desconfiança total. A decisão sobre a data de aniversário do golpe e a recente declaração do presidente de que não vai “remoer o passado” e tentará “tocar este país para frente” são dois sinais de uma mesma estratégia. É um imperativo da governabilidade num contexto de feridas à espera de cicatrização, e também uma forma de prestigiar o atual comando militar, também artífice da pacificação. Trata-se de uma via de mão dupla: tudo indica que, diferentemente de anos anteriores, militares não celebrarão o “movimento de 1964″ com a chamada “ordem do dia” lembrando o 31 de março. Os tempos são outros. Há momentos em que é preciso afirmar que o passado passou.
A estratégia será bem-sucedida se também for capaz de evitar que militares voltem a interferir na política doméstica. Não lhes cabe enxergar-se como um poder moderador da República, como chegaram a defender alguns setores da extrema direita, numa singular interpretação do artigo 142 da Constituição Federal. Como já sublinhamos neste espaço, o texto da Constituição não autoriza essa leitura, ficando as Forças Armadas submetidas ao poder civil, e não o contrário.
Houve, porém, quem definisse o gesto do governo como uma evidência de que a democracia e a Constituição estão se curvando às Armas. São duas agendas distintas: de um lado, um princípio elementar de sustentação do equilíbrio democrático; de outro, a necessidade de reconhecimento das violações aos direitos humanos e da memória das vítimas da ditadura. Conciliação não é esquecimento, assim como memória, verdade e justiça não significam revanchismo. Essa dupla premissa, basilar num país que enfrentou uma ditadura, justifica, por exemplo, a necessidade de reabertura da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
Extinta no final do governo de Jair Bolsonaro, notório admirador de alguns dos mais cruéis agentes da ditadura, a CEMDP está prevista na Constituição e foi criada logo no primeiro ano de governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O objetivo era dar reconhecimento oficial a pessoas que morreram ou desapareceram pela sua atuação política durante a ditadura militar, incluindo a emissão de atestados de óbito para parentes das vítimas, a localização de corpos e a possibilidade de reparação por meio de indenizações. A reabertura da comissão é um dever do presidente Lula, na prerrogativa do governo de abrir caminho para a responsabilização do Estado pela contumaz violação de direitos humanos cometida por seus agentes durante o regime militar.
Apesar de as circunstâncias não serem simples para a reabertura da comissão, convém não esquecê-la. São duas agendas distintas, mas conciliáveis – um compromisso mútuo de transigência em favor da democracia.