Mais de um ministro manifestou perplexidade ante a necessidade de a Corte afastar, mais de 30 anos após a redemocratização, pretensões há muito sepultadas por todas as democracias sérias do planeta. Chega a ser constrangedor e seria ocioso se a interpretação golpista não tivesse sido gestada e disseminada por um presidente da República, Jair Bolsonaro, com as consequências que todos conhecem: uma multidão de celerados invadindo as sedes dos Três Poderes a fim de suscitar uma intervenção militar.
Mau militar, Bolsonaro se provou um péssimo democrata. No fundo de uma carreira política errática e atrabiliária, houve sempre uma constante fundamental: o inconformismo com o fim da ditadura militar e o revanchismo contra a Constituição de 88, não só em relação à restauração do regime democrático, mas também a propósito de direitos e garantias fundamentais contra o arbítrio, a censura, a repressão e o cerceamento às liberdades civis.
Previsivelmente, o bolsonarismo submeteu as Forças Armadas ao seu maior teste de estresse desde a redemocratização. Inúmeras vezes Bolsonaro se referiu ao Exército como “meu Exército”. Para dar um verniz de legitimidade ao seu voluntarismo, propagou a tese de que as Forças Armadas estariam constitucionalmente autorizadas a intervir em qualquer momento por convocação presidencial e que seriam uma espécie de “poder moderador” autorizado a arbitrar conflitos entre os Poderes.
Desde a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, passando pelo “regime da espada” após a decretação da República, o Estado Novo ou a ditadura militar, a história mostra que as Forças Armadas têm pouca experiência com moderação. A Constituição de 88 estabeleceu em seu art. 142 que elas tampouco são um “Poder”, mas instituições destinadas “à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Como havia dúvida sobre a possibilidade de o emprego das Forças ser determinado diretamente pelo Judiciário ou pelo Legislativo, a Lei Complementar 97/99 regulamentou a competência do presidente da República para acioná-las por iniciativa própria ou a pedido dos outros Poderes. Mas o oportunismo de Bolsonaro gerou a exegese bastarda de que as Forças estariam totalmente submetidas ao arbítrio do presidente da República. A ação movida pelo PDT se voltava justamente a dirimir qualquer controvérsia a propósito da compatibilidade desta lei com a Constituição.
Restou à Corte afirmar o óbvio: que as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo, subordinadas ao poder civil, que tem seus próprios limites constitucionais. Assim, sua missão institucional não admite o exercício de qualquer atuação moderadora entre os Três Poderes; a chefia do Executivo é uma prerrogativa limitada, que não admite o emprego das Forças para cercear a independência dos outros Poderes; e seu emprego para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estado de defesa e de estado de sítio, cabe somente, nas palavras do relator, o ministro Luiz Fux, “ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. E isso somente com o aval do Congresso.
Ao sepultar a tese natimorta e surreal de um “golpe constitucional”, seria bom que a decisão do STF servisse para lançar uma pá de cal nas tentativas de tramitar uma alteração do artigo 142 da Constituição, um comportamento de risco que só abre margem à instabilidade, controvérsias desnecessárias e eventuais retrocessos. Como diz o bordão, “a regra é clara”. Basta segui-la.
Comentário nosso
Realmente, o STF está decidindo pelo óbvio. A Constituição não pode estar sujeita aos militares. Só há três poderes na República: Executivo, Legislativo e Judiciário. As Forças Armadas são instituições de Estado, sujeitas aos três poderes da República, jamais poder tutelar sobre os Poderes da República. O Golpe de 64 foi uma violentação da Constituição que deu no que deu: violência contra a sociedade com militares cometendo todo tipo violência e se locupletando no poder. Agora, recentemente, Bolsonaro tentou outro golpe. Sorte nossa que o as Forças Armadas de hoje estão mais adultas e resistiram à tentativa de Bolsonaro. Que terminou suscitando a discussão que o STF sepulta agora. (LGLM)