A Justiça como alvo, e Lula também
(Blog do Ricardo Noblat, no Metropoles, em
Era para ter sido assim: Bolsonaro no papel principal de mais da encenada pela Companhia Nacional da Mentira, cuja turnê pelo país teve início da Avenida Paulista, no final de fevereiro; o pastor Silas Malafaia como coadjuvante; e os bolsonaristas de Copacabana na condição de barulhentos figurantes do espetáculo.
Mas não foi. Bolsonaro delegou a Malafaia, sua boca de aluguel, o que não teve coragem de dizer sobre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e os militares. Louco para ser preso temporariamente, Malafaia disse. E apenas uma fatia minúscula de bolsonaristas apareceu para ouvi-los.
Segundo pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo, o ato convocado por Bolsonaro, sob o pretexto de que o Brasil está à beira de uma ditadura, reuniu cerca de 32.750 pessoas. O número foi levantado a partir de imagens áreas analisadas por programas de computador.
A estreia da farsa na Avenida Paulista reuniu 185 mil. Em Copacabana, moram 146 mil pessoas, em boa parte aposentadas. Três delas foram vistas fantasiadas de foguete em homenagem a Elon Musk, o segundo homem mais rico do mundo, dono do X, ex-Twitter, e de uma fábrica de foguetes espaciais.
O comício foi coreografado nos mínimos detalhes. Uma cubana, ex-comentarista da rádio Jovem Pan, perguntou se a plateia lembrava a primeira vez que usou papel higiênico. Ninguém respondeu. Então, ela disse que sua primeira vez foi aos 12 anos, quando chegou ao Brasil depois de fugir da ditadura em Cuba. Sim, e daí?
Gustavo Gayer, deputado federal (PL-GO), discursou chamando Bolsonaro de “guerreiro da liberdade mundial”; ora vejam só, logo Bolsonaro que sempre defendeu a ditadura de 64. E em inglês, mandou um recado para Musk:
“Olhe para o que está acontecendo no Brasil. Pedimos socorro em nome de nossa liberdade”. (Patético!)
O pastor e deputado Marco Feliciano, ex-PSC, ex-PSD, ex-PSC novamente, ex-PODE, ex-Republicanos, e hoje PL, apressou-se em pregar que os bolsonaristas são maioria no Brasil. Julgou dispensável explicar porque, sendo maioria, eles não reelegeram seu guia. Feliciano comparou Bolsonaro a Moisés, o profeta que libertou os hebreus.
Aí entrou Malafaia em cena e a multidão delirou. Sobre o golpe bolsonarista fracassado, ele disse com o maior cinismo:
“Bolsonaro apresentou um documento sugestivo aos militares, isso não é minuta de golpe. É a maior fake news da história política do Brasil inventada pela Globo. Bolsonaro não propôs golpe de estado”.
“Lula não foi impedido de governar, os ministros também não. O que eles chamam de golpe foi meia dúzia de baderneiros, não teve canhão, tiro. Isso é uma armação para atingir Bolsonaro”.
Minuta é o esboço de um documento. Foram encontradas três: uma com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante-de-ordem de Bolsonaro; outra com Anderson Torres, ministro da Justiça de Bolsonaro; e a terceira no gabinete de Bolsonaro, na sede do PL, em Brasília. Para Malafaia, o golpe foi apenas uma sugestão. Taokey?
Coube a Malafaia atacar Alexandre de Moraes sem dó nem piedade. Ele citou o nome do ministro mais de dez vezes. Uma delas:
“Alexandre de Moraes, quem te colocou como censor da democracia? Quem é você para dizer o que um brasileiro pode ou não falar? Todo ditador tem um modus operandi. Prende alguns para colocar medo nos outros. Alexandre de Moraes é uma ameaça à democracia.”
Malafaia provocou os militares que recusaram a sugestão de Bolsonaro de dar um golpe, e criticou Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado:
“Se esses comandantes militares honram a farda que vestem, renunciem dos seus cargos e que nenhum outro comandante assuma até que haja uma investigação do Senado. E o senhor presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, frouxo, covarde e omisso, vai ser acusado de prevaricação”.
Antes no fundo do palanque, Bolsonaro aproximou-se de Malafaia no momento em que o pastor mirou nos comandantes militares e em Pacheco, pondo a mão direita no seu ombro em sinal de concordância. Abraçou-o longamente ao final da fala de Malafaia, e começou seu discurso disparando em Lula:
Bolsonaro vitimou-se, como de hábito:
“O que o sistema quer não é só me jogar numa cadeia qualquer, quer terminar o que aconteceu em Juiz de Fora [a facada]. Somos a maioria da Nação, mas isso só será possível com liberdade de expressão”.
“Eu poderia ficar nos Estados Unidos, e estaria muito bem. Mas não poderia abandonar o meu Brasil que amo”.
(Não poderia ficar. Ninguém fica nos Estados Unidos o tempo que quiser, menos ainda com certificado falso de vacina contra a Covid.)
Por fim, e também como de costume, baixou a bola:
“Não vamos falar de fraude, vamos considerar 2022 coisa passada”.
Bolsonaro falou de fraude durante quatro anos, empenhado em desacreditar o sistema eleitoral. Derrotado, insistiu com a fraude para convencer seus ministros e os comandantes militares a apoiar um golpe. Agora, nega o que vimos. É um mentiroso nato, que não se arrepende do que fez e deve ser condenado.