Entre a cruz e a lei, Ministro Kássio Nunes prefere a morte

By | 04/04/2021 2:37 pm

Não bastasse carecer de base científica, decisão de liberar cultos na pandemia não para em pé juridicamente

(Na Folha, Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação)

Direito é como um castelo de cartas, onde as peças (os argumentos) empilham-se delicadamente; sem isso, o castelo todo cai por terra. É o que acontece com a decisão do ministro Kassio Nunes, do STF (Supremo Tribunal Federal), pela liberação de celebrações religiosas presenciais na pandemia. Que fique claro: o ministro desafia a hermenêutica e a paciência jurídicas ao tentar, sem sucesso, empilhar de forma desconexa argumentos que, juntos, não convencem e, sozinhos, estão errados.

A primeira carta malposta é quem apresenta a ação. Nunes concedeu a medida cautelar pleiteada em uma ação diretamente proposta no Tribunal pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), ação tecnicamente chamada de ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Qual o problema? Anajure não pode apresentar uma ADPF ao STF. Quem disse isso? O próprio STF, com aceite de Nunes, em outro caso de fevereiro de 2021.

Naquele caso (ADPF 703), o Tribunal, em voto do ministro Alexandre de Moraes, decidiu por unanimidade que a Anajure não cumpria com os requisitos para ingressar com uma ação direta no STF, na qualidade de “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”, como manda a Constituição e a lei. Nas palavras do STF, Anajure congrega “associados não vinculados a uma única e homogênea categoria profissional ou econômica”, logo ilegítima para propor a ação.

No caso decidido neste sábado (3), Nunes tenta dar uma cartada em si mesmo: o ministro do STF diz praticar “distinguishing” —um termo técnico, aqui mal empregado, para dizer que o precedente anterior do STF não se aplicaria por ser distinto do caso atual. Primeiro, isso não faz sentido porque o caso decidido neste domingo versa sobre exatamente o mesmo tema do caso rejeitado pelo STF há um mês, a saber: questionamento de medidas municipais que restringem aglomerações religiosas em razão do agravamento da pandemia.

Em segundo lugar, Nunes pratica dois pesos, duas medidas: mesmo se considerarmos que a recente jurisprudência do STF tem flexibilizado as regras para se apresentar um caso direto ao Tribunal, o mesmo ministro preferiu rejeitar, no último 23 de fevereiro, a possibilidade da confederação nacional de quilombolas (Conaq) de usar do mesmo instrumento legal da ADPF, na ocasião para proteger comunidades quilombolas contra a Covid-19.

Outra carta malposta no castelo de argumentos de Nunes é sua visão sobre como lidar com conflitos de direitos fundamentais —de um lado, a liberdade de culto e, de outro, a vida e a saúde. Aqui, a técnica jurídica de Nunes é sofrível. “Proibir pura e simplesmente o exercício de qualquer prática religiosa viola a razoabilidade e a proporcionalidade”, escreve o ministro. Razoabilidade (adequação entre os meios empregados pelos municípios, o isolamento social, e o fim almejado, a diminuição das mortes) é diferente, tecnicamente, da regra de proporcionalidade, essa mais ampla.

Kassio Nunes teria que explicar, ademais, por que liberar cultos no auge da pandemia seria a solução, entre outras igualmente eficazes para garantir a liberdade religiosa, que menos violaria a vida e a saúde de todos. Tampouco o ministro nos explica por que pedir para que se pratique, temporariamente, a religião em casa viola tanto a liberdade religiosa quanto as mortes sem ar na pandemia violam o direito à vida. Esses questionamentos fazem parte da proporcionalidade que o ministro se propõe a fazer e não faz.

Praticar a fé em casa respeita tanto a sua religião quanto a vida e saúde dos outros. Entre a cruz que diz proteger e a lei que deve servir, Nunes não respeita nem um nem outro. Seus argumentos, já dizia Jesus, “por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de cadáveres.” Se quisermos falar com Deus, é no amor pela vida que O encontraremos, não entre quatro paredes.

 

Nossa opinião -Pelo exposto acima, a decisão do Ministro Kassio Nunes foi feita de encomenda para atender determinados interesses, mas certamente será derrubada pelo Plenário do STF que tem decidido em sentido contrário em ações semelhantes. (LGLM)

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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