(Josias de Sousa, colunista do UOL, 12/04/2022)
O conceito de um governo é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender a decadência do governo Bolsonaro, encontrará em meio aos escombros de 2022 evidências de que o cinismo foi o mais perto da honestidade que o atual presidente conseguiu chegar.
Numa entrevista a um grupo de comunicação do Pará, Bolsonaro disse que a Polícia Federal não precisa se preocupar com seu governo, pois ninguém faz nada de errado. “Quantas vezes, no Pará, o governador recebeu a visita da Polícia Federal?”, perguntou o presidente. “É diferente do governo federal. Aqui não tem visita da Polícia Federal, não tem o que investigar aqui, não fazemos nada de errado.”
Noutra entrevista, dessa vez a um podcast, Bolsonaro admitiu que entregou cargos ao centrão E defendeu a prática da distribuição de verbas federais aos parlamentares, inclusive as do Orçamento secreto. “Ajuda a acalmar o Parlamento”, declarou. “O que eles querem, no final das contas, é mandar recursos para a sua cidade. Não tenho nada a ver com isso.”
Os arqueólogos descobrirão sob a fuligem evidências de que nada, na Era Bolsonaro, tornou-se uma palavra que ultrapassou tudo. Eles se espantarão com tudo que não teve nada a ver com o presidente: o conluio do ministro do Meio Ambiente com madeireiros criminosos, o balcão das vacinas, o contrato fraudulento do imunizante indiano, as as propinas dos pastores lobistas do MEC, o balcão de malfeitorias do centrão Fundo Nacional de Educação, as licitações fraudulentas da Codevasf.
Os arqueólogos enxergarão nos vídeos em que Bolsonaro diz não haver corrupção no seu governo um comportamento assemelhado ao mais de Diógenes de Sinope, filósofo grego a quem se atribui a estruturação do movimento filosófico batizado de “cinismo”.
Conta-se que Alexandre, o Grande, com poderes tão supremos quanto os do presidente infalível do Brasil de 2022, perguntou a Diógenes o que poderia fazer por ele. E o sábio, incomodado com a sombra: “Posicione-se um pouco menos entre mim e o Sol.” A diferença entre Bolsonaro e Diógenes é que o sábio brasileiro alcançou um inédito grau de sofisticação filosófica. Já ultrapassou a fase cínica das rachadinhas. Alcançou o estágio do pós-cinismo.