Pode-se dizer, não há dúvida, que a ausência de legislação específica sobre determinado assunto é circunstância habitual do trabalho da Justiça. Sempre há temas da vida nacional sem a devida regulação, tendo o Judiciário experiência de sobra sobre como proceder nesses casos. A rigor, o que acontece agora com as fake news nas redes sociais não é nenhuma novidade.
É preciso alertar, no entanto, que, por uma série de circunstâncias, a ausência de regulação legal sobre as fake news tem gerado problemas inéditos, que tensionam de forma especialmente sensível o funcionamento e a legitimidade do Estado Democrático de Direito.
Em primeiro lugar, o tema envolve muito mais do que um eventual aperfeiçoamento da legislação vigente. Grupos e pessoas têm usado as redes sociais para ameaçar e atacar as instituições democráticas. Sem exagero, prover uma regulação adequada para as fake news – apta tanto a prevenir e punir abusos e crimes como a proteger a liberdade de expressão e de opinião – é uma questão de sobrevivência do Estado Democrático de Direito e das garantias e liberdades individuais.
Um segundo ponto refere-se à autoridade e à legitimidade do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF). Sendo uma questão de sobrevivência do regime democrático, a Justiça não tem o direito de pecar por omissão. Não tem a possibilidade de não agir, ficando inerte à espera do Congresso. Ela tem o dever de proteger a Constituição de 1988 e o Estado Democrático de Direito. No entanto, não havendo uma legislação específica – ou seja, não tendo os representantes da população determinado os critérios precisos para essa regulação –, quem não tiver concordado com as decisões do Judiciário sobre esses temas sempre poderá alegar que elas não dispõem de legitimidade democrática.
Tal hipótese não é teórica. Nos últimos quatro anos, precisamente quando o STF foi mais instado a proteger o regime democrático – em que teve de dedicar mais horas e mais energias para defender o Estado Democrático de Direito –, foi o período em que a Corte mais recebeu críticas por um suposto déficit democrático de sua atuação, sob a justificativa de que, com frequência, estaria invadindo as competências do Congresso. Estaria havendo um patamar inédito de ativismo judicial, com ministros do STF, que não receberam voto popular, inventando soluções com efeitos sistêmicos sobre todo o funcionamento das redes sociais.
É sempre oportuna a recomendação de que o Judiciário deve se ater aos limites de suas atribuições. Especialmente ampla, a Constituição de 1988 pode suscitar interpretações pontuais que não sejam muito aderentes ao princípio constitucional da separação de Poderes. No entanto, em relação à regulação das redes sociais – o que inclui temas especialmente controvertidos, como regras para suspensão de perfis, retirada de conteúdo e penalidades por atuação abusiva nos meios digitais –, o grande responsável pela situação atual é o Congresso. Ele é o grande omisso.
Ninguém duvida que regulação de redes sociais e fake news é assunto complexo, a exigir extremo cuidado, estudo, debate, amadurecimento dos temas, análise das soluções de outros países. Seja qual for a solução adotada pelo Congresso, nenhuma legislação será perfeitamente adequada. Depois, será preciso aperfeiçoá-la, a partir da experiência obtida. Mas precisamente por isso é necessário que o Congresso atue. Objeto de discussões diárias nos mais diversos setores sociais, o tema está incendiando o País. Câmara e Senado não podem ficar alheios.