A rigor, o bolsonarismo nunca teve a ver com política, na acepção clássica do termo. Aliás, são noções antitéticas. Por princípio, o bolsonarismo sempre esteve orientado pela exclusão de tudo e de todos que lhe sejam diversos, jamais pelo diálogo e pela concertação de interesses. É possível que os bolsonaristas nem sequer concebam a mera ideia de “interesse público”, comprometidos que estão com a defesa inarredável dos interesses particulares do líder de um clã – que em certos aspectos lembra as organizações mafiosas.
Ora, para todos os que se movem na esfera pública imbuídos desse espírito, o vezo patrimonialista, que está na essência do bolsonarismo, decerto nem é percebido como tal. A apropriação de recursos do Estado soa, para esses analfabetos cívicos, como algo mais que aceitável – soa natural.
A ascensão de alguém como Bolsonaro à Presidência levou ao paroxismo a ideia segundo a qual, uma vez legitimado pela vontade popular manifestada nas urnas, a um governante seria dado tomar posse do aparato do Estado para dele fazer o uso que melhor lhe convier. Assim, a partir de sua chegada ao topo da carreira política, Bolsonaro passou a ser visto – e a agir – como uma espécie de mentor dos cupins da República, sendo ele mesmo um desses cupins, e dos mais vorazes de que se tem notícia ao longo de quase 134 anos de história republicana.
Bolsonaro olhou para o Estado brasileiro e viu um apêndice de sua família. Usou-o ao longo da vida, em benefício próprio ou de seus familiares e aliados, de acordo com as possibilidades que cada cargo público lhe proporcionava à época. O caso da suposta venda ilegal de joias da União seria apenas mais uma amostra desse inacreditável uso da estrutura pública para conduzir negócios particulares.
Por mais estarrecedores que sejam para grande parte dos cidadãos os indícios de corrupção, lavagem de dinheiro e peculato tornados públicos até o momento, para alguém como Bolsonaro, que tratou as Forças Armadas como se fossem “suas”, ordenou a troca de agentes da PF em investigações sensíveis para ele e fez da Polícia Rodoviária Federal sua guarda pretoriana, só para citar alguns exemplos, tratar-se-ia de algo absolutamente previsível. Essa mixórdia, afinal, é a marca indelével de seu governo. Todas as ações oficiais e extraoficiais de Bolsonaro na Presidência, e mesmo antes disso, concorreram para o uso desabrido da máquina pública para o atendimento de necessidades pessoais.
A chegada de Bolsonaro à Presidência parece ter sido a senha para que os inimigos do pacto constitucional e do Estado Democrático de Direito se sentissem livres para dispor da estrutura estatal como bem entendessem, comportando-se como se as referências éticas e cívicas da República tivessem sido substituídas por um código de conduta do submundo.
A mentira e o desrespeito pela coisa pública se tornaram valores positivos – e é espantoso que tantos militares, alguns com destacada carreira e ainda na ativa, tenham se deixado enredar por esse movimento que, em tudo, é a negação dos ideais das Forças Armadas.
O bolsonarismo legitimou a ação dos parasitas que se refestelam com recursos do Estado, um bando de desqualificados que jamais teriam espaço em qualquer governo minimamente decente. O caso das joias, se não é o mais grave da terrível passagem de Bolsonaro pelo poder, é talvez o mais significativo: segundo as investigações, mobilizou-se o aparato estatal, de funcionários ao avião presidencial, para passar nos cobres um punhado de presentes que Bolsonaro ganhou na condição de presidente e que não lhe pertenciam. Coisa de gente imoral.