Melhor cortina de fumaça para ardis é elogiar a verdade enquanto se manipula a massa
(Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”, na Folha, em 22/08/2023)
Praticamente tudo relacionado a Bolsonaro pode, em grande medida, ser descrito pelo campo semântico da falsificação. De adulteração e armação a tramoia e trapaça, abundam ações ou falas de Bolsonaro e do seu círculo íntimo para ilustrar cada um dos vocábulos no caminho: ardil, contrafação, embuste, engano, farsa, fraude, golpe, impostura, logro, manipulação, tapeação. Procure uma palavra cujo significado seja “atitude que visa enganar” ou “situação armada para fazer de conta” e você encontrará um verbete da enciclopédia bolsonarista.
Tudo supostamente contra a hipocrisia, a polidez burguesa, o fingimento. Tudo forjado para agradar muitos públicos que se identificam com “homens do povo” e para corresponder à máxima de que quem fala a verdade não merece castigo e à crença de que a hipocrisia, não a brutalidade e a grosseria, é o pior traço de um caráter. Não é à toa que o jargão da autenticidade se fez acompanhar pelo louvor à verdade —assim, no singular, para dar ares messiânicos à chegada de Bolsonaro ao poder.
Não há, no entanto, melhor cortina de fumaça para ardis e maracutaias do que se elogiar a verdade e a autenticidade enquanto se investe, por meio de subterfúgios, na manipulação das massas. Tem até uma expressão latina para tanto: Ars est artem celare. O segredo da arte é esconder o artifício, parecer natural, espontâneo. Daí a espontaneidade planejada de um presidente “pão com margarina”, que toma café em copo americano, adora comer o dogão da esquina, com ketchup escorrendo pelos dedos e pingando na camisa, a fim de deliberadamente corresponder ao modelo do homem simples com quem tantos se identificam.
Na semana passada, Walter Delgatti acusou Bolsonaro e o seu entorno de encomendar-lhe: a simulação de um código fonte da urna eletrônica, inserindo nele linhas para fingir que era possível votar em um candidato e o voto ser computado para outro; que assumisse um grampo inverídico de uma conversa fake do ministro Alexandre de Moraes, com o intuito de engabelar os cidadãos; uma aparição do hacker na propaganda de Bolsonaro, mentindo ao público que era possível fraudar o processo eleitoral. Além de oferecer: a promessa de que, se fosse descoberto e acusado pelas adulterações cometidas, receberia indulto presidencial; garantia de carta branca para fazer o que fosse necessário para ludibriar o público.
Em semanas anteriores, soubemos da mutreta da vaquinha digital solicitada para que Bolsonaro pudesse pagar multas por descumprimento da legislação sanitária. Se não fosse o Coaf ou o jornalismo, não saberíamos que o pobre homem arrecadou e malocou em suas contas a bagatela de R$ 17,1 milhões, suficiente para pagar 17 vezes as multas recebidas —que não pagou e, provavelmente, serão perdoadas pelo governador bolsonarista de São Paulo— e equivalente a oito vezes tudo o que o honesto cidadão amealhou ao longa da vida. Quando a informação veio a público, a resposta foi ainda turbinada pela fingida autenticidade: o que sobra “dá pra tomar um caldo de cana e comer um pastel com dona Michelle”. No Bahrein, claro.
E ainda estamos às voltas com as denúncias de que o ex-presidente, como um desses ditadores fugitivos exilados no estrangeiro, teria mandado homens de sua confiança transformar em dinheiro vivo joias e valores que não eram seus. Tudo clandestino, à socapa, como convém a um homem autêntico, de família, temente a Deus, simples e, obviamente, adorador da verdade.
Comentário nosso
Bolsonaro “pintou e bordou”, junto com os seus seguidores, durante o seu mandato, crente de que se perpetuaria no poder, pelo menos por mais quatro anos, e que não seria desmascarado tão cedo. Terminou quebrando a cara. Suas manobras não foram suficientes para permanecer no poder, não conseguir iludir os militares por mais tempo e agora está sendo desmascarado. Ficou inelegível por oito anos. seus sequazes o estão abandonando e pode terminar até preso pelos crimes de que é acusado. E ainda tem gente se enganando, procurando justificativas e desculpas para suas estrepulias. (LGLM)