Diante do modo como a Justiça tem aplicado a prisão preventiva, no espírito do lavajatismo, não seria surpresa uma eventual detenção. Mas a lei não autoriza antecipação de pena
Desde a semana passada, quando vieram à tona mais indícios de eventual participação de Jair Bolsonaro em crimes – alguns deles, com penas altas –, intensificou-se, em diversos setores da sociedade, uma espécie de “torcida” pela prisão do ex-presidente. Diante dessa expectativa, cabe relembrar alguns pontos sobre a prisão no Estado Democrático de Direito.
Para muitos, a prisão de Jair Bolsonaro seria uma simples questão de justiça: se o ex-presidente cometeu crimes, ele tem de sofrer as devidas consequências legais. O raciocínio é claro: não cabe impunidade a quem usa um cargo público – no caso, o mais alto posto do Executivo federal – para delinquir.
Certamente, um ato criminoso deve ser punido. Mas a apuração desse ato exige um processo judicial, dentro de um amplo espaço de contraditório e com efetivo direito de defesa. A punição deve vir no final da ação penal, e não no seu início. Até agora, nem mesmo uma denúncia formal foi apresentada contra Jair Bolsonaro no caso das vendas das joias ou no dos ataques contra a democracia.
Neste momento, portanto, uma eventual prisão de Jair Bolsonaro seria necessariamente uma medida preventiva, que não é antecipação de pena nem pode ser usada como tal. Diz a lei: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia” (art. 313, § 2.º, Código de Processo Penal, CPP). Ou seja, nas atuais circunstâncias, não é válido o raciocínio de que, por ter cometido crimes, o ex-presidente deveria ser preso agora. A prisão como pena exige decisão transitada em julgado e não há sequer processo criminal contra o ex-presidente.
A respeito da prisão preventiva, a legislação brasileira tem requisitos bem definidos. A medida cautelar poderá ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (art. 312, CPP).
A redação atual desses dois dispositivos do CPP foi fruto da Lei 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime. Essas mudanças integram o esforço do Congresso em melhorar a efetividade do princípio da presunção de inocência, bem como das liberdades fundamentais de todos os cidadãos. Por isso, a Lei 13.964/2019 estabeleceu que “a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada” (art. 315, CPP).
Infelizmente, muitos juízes e tribunais ainda trabalham com uma compreensão excessivamente ampla a respeito de seus poderes para decretar a prisão preventiva, compreensão esta que, contrariando a legislação vigente, viola a liberdade de muitos cidadãos. Não há dúvida, por exemplo, que, fosse aplicado o entendimento da Lava Jato sobre a prisão preventiva, Jair Bolsonaro já estaria preso preventivamente.
O caminho, no entanto, não é errar de novo, numa espécie de vingança. Tal atitude apenas geraria novos problemas, e o papel do Judiciário é aplicar a lei de modo a solucionar – e não aumentar – os conflitos sociais. Em vez de aplicar antigas e ilegais concepções sobre a prisão preventiva, as atuais circunstâncias envolvendo Jair Bolsonaro devem conduzir a um amadurecimento de toda a Justiça sobre o tema, em conformidade com o que dispõe a lei.
Nesse sentido, um ponto de melhoria do Judiciário perfeitamente acessível é a aplicação prioritária das medidas cautelares diversas da prisão. “A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar” (art. 282, § 6.º, CPP). Hoje, muitas prisões preventivas são ilegais, tendo em vista que poderiam ser substituídas por outra medida cautelar, como a proibição de ausentar-se da comarca ou a monitoração eletrônica.
A melhor defesa da democracia e da sociedade é a aplicação da lei. Sem exceções para favorecer ou para perseguir.
Comentário nosso
Se Bolsonaro comprovadamente cometeu crimes, merece e deve ser preso. Mas que isso aconteça dentro do devido processo legal. A maior garantia da liberdade do cidadão é que ele só seja preso dentro do devido processo legal, a não ser que solto ele represente uma ameaça à sociedade. Um suspeito que esteja ameaçando testemunhas, tentando destruir provas, dificultando o trabalho da Justiça, (inclusive a apuração dos fatos de que é acusado), se preparando para fugir, este deve ser impedido de se evadir, mesmo que tenha de apelar para sua prisão. Um caso clássico de prisão justificável é a de autoridades (prefeito e governador, por exemplo) que possam pressionar testemunhas ou destruir provas o que ten frequentemente se transformado em afastamentos de cargo que às vezes se tornam definitivos. (LGLM)