(Caio César Vioto de Andrade, Blog do Fausto Macedo, no Estadão, em 06/05/2024)
O mês de abril de 2024 marca a efeméride dos sessenta anos do golpe de Estado que levou o Brasil a uma ditadura a partir de 1964. Conforme muitos historiadores e analistas têm observado, os acontecimentos recentes, em especial o chamado 8 de janeiro de 2023, trouxeram a ideia de “golpe” para mais perto da nossa realidade histórica do que poderíamos prever há uma, duas ou três décadas, quando a tutela militar do poder político parecia devidamente superada.
Tomando como referência os últimos dez anos, os acontecimentos políticos, econômicos e sociais que balançaram as estruturas da Nova República (constituída após o fim da ditadura, em 1985), tais como crise econômica, impeachment presidencial e diversos escândalos de corrupção, fizeram com que parte significativa da sociedade – se não em número, mas em capacidade de mobilização – passasse a questionar a própria democracia, idealizando um suposto passado de prosperidade e idoneidade do regime militar.
Como bem sabemos, o tema da corrupção foi um dos debates políticos que mais mobilizaram a opinião pública nos últimos anos. Parte da sociedade passou a ver a política como uma atividade intrinsecamente corrupta, o que gerou dois fenômenos diferentes e complementares. Primeiramente, a maioria das lideranças políticas que exerceram o poder ao longo da Nova República, desde 1985, e que também foram responsáveis pelo próprio processo de transição democrática, como figuras ligadas ao PT, PSDB e PMDB, passaram a ser associadas à corrupção. Obviamente, isso não ocorreu do dia para a noite, nem totalmente sem razão. De fato, muitas dessas lideranças acabaram envolvidas em diversas acusações e processos de corrupção. No entanto, a associação entre política e corrupção, feita por grande parcela da opinião pública brasileira gerou um segundo e paradoxal fenômeno: políticos com um discurso “antipolítico” acabaram ocupando, ao longo do tempo, o lugar de poder das antigas lideranças da redemocratização. O ex-presidente Jair Bolsonaro, mesmo tendo sido Deputado por várias décadas, conseguiu se eleger à Presidência com um discurso “contra tudo o que está aí”. O ex-Juiz e posteriormente Ministro e Senador Sérgio Moro, passou a encarnar o Judiciário que, “de fora” da política, tentava “limpar” a corrupção, vista como inerente ao “jogo político”.
Em grande medida, o golpe de Estado de 1964, perpetrado por lideranças militares e civis, continha um discurso semelhante: a competição e a negociação políticas, por si mesmas, gerariam corrupção. Diante disso, era necessário que algum grupo que não pertencesse ao “jogo político” usual tomasse o poder e passasse a guiar o Estado e a nação rumo à “ordem” e ao “progresso”. Mais uma vez, essa noção não era novidade na história brasileira: os militares proclamaram a República, em 1889, bem como Getúlio Vargas ascendeu ao poder em 1930, baseados nessa ideologia, de influência positivista, que responsabilizava o liberalismo político pelas mazelas da sociedade, da economia e da própria política. Assim, a única saída em direção à ordem social, à racionalidade e ao desenvolvimento seria uma espécie de autoritarismo benevolente e esclarecido, capaz de governar “acima” da política. Alguns autores classificam este conjunto de noções e relações entre política, administração pública e desenvolvimento econômico como “ideologia tecnoburocrática”, ou seja, a ideia de que é possível separar ou insular a administração pública das pressões políticas, a fim de alcançar resultados efetivos.
O regime militar, de fato, tentou implementar esta agenda. Os diversos planos de desenvolvimento econômico, comandado por civis que aderiram ao regime militar e ocuparam pastas como Fazenda e Planejamento, dentre os quais podemos citar renomados economistas como Roberto Campos e Delfim Netto, pretendiam implementar políticas econômicas, fossem ortodoxas ou heterodoxas, de ajuste macroeconômico ou de busca do crescimento, conforme a conjuntura específica, que levassem o país ao desenvolvimento nacional. No âmbito administrativo, o Decreto-Lei 200/1967 reformou e dividiu a administração entre direta e indireta, dando maior autonomia e prestígio para esta última, constituída, à época, por bancos públicos (BNDE, BNH etc.) ou por empresas estatais dos mais diversos setores. A ideia por trás desses projetos era o comando “racional” e “modernizador” do aparato de Estado, longe das pressões políticas que haviam marcado o período anterior, desde 1945, e impedido a continuidade do desenvolvimento nacional, iniciado em outra ditadura, a de Vargas.
No entanto, a prática não saiu conforme o planejado. A ausência instituições democráticas, como um Congresso atuante e um Judiciário independente, fez com que os mecanismos de transparência fossem frágeis, ou seja, não havia meios eficientes para limitar a arbitrariedade do governo federal e suas agências. Dessa forma, toda sorte de lobbies e pressões de grupos econômicos e corporativos, inclusive da própria alta cúpula da administração indireta, acabou capturando o aparato estatal a fim de utilizá-lo em benefício próprio, dando margem a diversos casos não apenas de corrupção, mas de políticas protecionistas e de subsídios a grupos de interesses.
O legado desse período, após alguns poucos anos de crescimento econômico (o chamado “milagre econômico”) foi a hiperinflação, a recessão e o endividamento externo, problemas com os quais o Brasil teve que lidar na década de 1980 e 1990, mesmo após o fim do regime militar. A percepção de ausência de corrupção por parte dos militares, portanto, é completamente equivocada. O que mudou após o fim da ditadura militar foram os mecanismos de limitação do poder do Estado que, notadamente a partir das garantias fundamentais da Constituição de 1988 e das instituições econômicas do Plano Real, bem como de uma série de medidas de transparência na administração pública adotadas nos últimos anos, fizeram com que os casos de corrupção ou de improbidade administrativa viessem à tona com mais frequência e intensidade, mobilizando a opinião pública. Paradoxalmente, muitos dos que defendem a volta a um regime autoritário, imaginando que este seria capaz de acabar com a corrupção, não compreendem que é justamente a falta de transparência e de mecanismos de limitação do poder que favorecem o uso indevido dos recursos públicos.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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