Uma das firmas contratadas para fornecer a carne congelada tem como atividade principal venda de roupas. O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. A compra foi contestada até pela funcionária da Funai que assinou a compra. “Desperdício de dinheiro público”, diz ela. Contrato segue em vigor
A bisteca seria dividida com os funcionários da Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Como os indígenas dizem que não receberam o alimento, se fossem comer tudo, os 32 servidores que se revezam por lá teriam um quilo de bisteca no prato por dia, o ano inteiro. Isso sem contar que a maioria passa a maior parte do tempo na floresta ao lado dos indígenas, bem longe da base da Funai.
Procurados, os presidentes da Funai no governo Bolsonaro e no governo Lula não se manifestaram.
Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari
A reportagem conversou com lideranças e famílias tanto do Javari quanto de outras etnias do País, que estiveram reunidas em Brasília no Acampamento Terra Livre, no mês passado. O relato foi sempre o mesmo: a entrega de cestas básicas não é algo comum nas aldeias.
O Vale do Javari, em especial, é uma das regiões mais isoladas do mundo. Do tamanho do Estado de Santa Catarina, o território indígena tem 8,5 milhões de hectares e é o segundo maior em extensão do País. A área concentra o maior número de povos de língua e tradições desconhecidas. Foi num dos rios que cortam a região que ocorreram os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho do ano passado.
Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bistecas. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus (AM), a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.
A principal organização indígena do Vale do Javari questiona o paradeiro das bistecas. “Nós não recebemos alimentação. Fazer a aquisição e enviar para a aldeia não existe”, afirmou o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis.
O indígena Walciley Duarte, que trabalhava em uma base da Funai desde o fim de 2021, corrobora que “a entrega de bistecas congeladas nunca aconteceu para os indígenas”. Em abril deste ano, ele foi nomeado como coordenador regional do órgão no Vale do Javari.
Indígena do Vale do Javari ouvido pela reportagem durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília.
Carnes e roupas
Uma das empresas contratadas admite que a bisteca pode não ter chegado aos indígenas. A S B Freire, de Manaus, que tem a venda de roupas como principal atividade, está registrada em nome de Sigrid Beleza Freire. O marido de Sigrid, Jorge Rodrigues, é quem cuida dos contratos. Ele afirmou ao Estadão que não pode garantir que o produto chegou ao Javari. “Não sei dizer se ele entregava. Os indígenas não tinham onde armazenar alimento perecível”, afirmou.
O dono da “Irmãos Costa” é o único que atesta a entrega das bistecas. “Eles têm freezer, vão de barco, tem uma logística”, afirmou. O Estadão constatou, entretanto, que até o ano passado sequer havia congeladores no Javari.
Esse contrato específico com a S B Freire foi encerrado pela Funai pela não entrega das bistecas e outros alimentos previstos na cesta básica.
Jorge Rodrigues, representante da empresa de roupas que recebeu pela venda de bistecas congeladas para a Funai
O empresário Humberto Abrão de Aguiar, dono do estabelecimento, disse estar pronto para efetuar todas as entregas neste ano, mas já fala em pedir ao governo Lula o reajuste dos valores para dar conta da distribuição das bistecas. “Se você souber o tanto de índio que tem”, argumentou Aguiar.
Com a palavra
Procurada pelo Estadão, a Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas – não se pronunciou. A direção atual do órgão evitou até mesmo responder se irá analisar os contratos em vigor.
O ex-presidente da Funai no governo Bolsonaro, delegado Marcelo Xavier, que respondia pela instituição durante a assinatura dos contratos, também foi procurado, mas não se manifestou.
A servidora Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari, disse que o fez porque foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que a Funai entregasse cestas básicas a todos os povos indígenas na pandemia.
“Na ocasião, foi feito uma Informação técnica e enviada à Presidência da Funai, destacando as diferenças culturais e especificidades alimentares dos povos indígenas do Vale do Javari, mas nunca foi considerada. Então, a ordem da gestão anterior era que os servidores entregassem cestas básicas”, justificou.