Governo Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca nunca entregues para indígenas na Amazônia

By | 15/05/2023 7:10 am

Uma das firmas contratadas para fornecer a carne congelada tem como atividade principal venda de roupas. O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. A compra foi contestada até pela funcionária da Funai que assinou a compra. “Desperdício de dinheiro público”, diz ela. Contrato segue em vigor

 

INDIOS55  BRASILIA DF 28.04.2023 (((EMBARGADO E EXCLUSIVO)))  CESTAS BÁSICAS / TERRAS INDÍGENAS -   ACAMPAMENTO TERRA LIVRE NACIONAL   OE - O governo federal usou dinheiro público para comprar cestas básicas em terras indígenas com produtos que nunca chegaram às comunidades. Entre 2019 e abril deste ano, o governo federal gastou R$ 78,6 milhões para comprar alimentos e fornecer cestas básicas em aldeias de todo o Brasil. Quase a metade do dinheiro, um total de R$ 38 milhões, foi gasta sem licitação.  Na foto, Indígenas de diversas  etnias durante o  Acampamento  Terra livre (ATL) que foi realizado em Brasília.     FOTO WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

O governo federal comprou 19 toneladas de bisteca para compor cestas básicas que deveriam ser enviadas ao Vale do Javari, no Alto Solimões (AM), mas a carne congelada nunca chegou às comunidades indígenas. Mesmo se o produto tivesse sido entregue, não haveria local de armazenamento e conservação para acomodar o alimento. Os contratos foram assinados no governo Bolsonaro entre 2020 e 2022 e seguem em vigor na atual gestão do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

A bisteca seria dividida com os funcionários da Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Como os indígenas dizem que não receberam o alimento, se fossem comer tudo, os 32 servidores que se revezam por lá teriam um quilo de bisteca no prato por dia, o ano inteiro. Isso sem contar que a maioria passa a maior parte do tempo na floresta ao lado dos indígenas, bem longe da base da Funai.

Procurados, os presidentes da Funai no governo Bolsonaro e no governo Lula não se manifestaram.

Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público.”

Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari

As cestas que efetivamente chegaram para os 13.330 marubos, matises, kanamaris e korubos continham apenas produtos secos, como arroz, farinha e sabão. Os contratos no valor de R$ 568,5 mil foram assinados pela Funai, antiga Fundação Nacional do Índio, de 2020 a 2022, durante o mandato do então presidente Jair Bolsonaro. Parte deles continua em vigor no atual governo.
Ao longo de um mês, o Estadão investigou 5,5 mil compras de alimentos para terras indígenas em todo o País e constatou que, a pretexto da pandemia de covid-19, metade foi feita sem licitação. O dinheiro gasto chegou a empresas recém-criadas e não houve comprovação de entrega de lotes de cestas básicas completas.

A reportagem conversou com lideranças e famílias tanto do Javari quanto de outras etnias do País, que estiveram reunidas em Brasília no Acampamento Terra Livre, no mês passado. O relato foi sempre o mesmo: a entrega de cestas básicas não é algo comum nas aldeias.

Vale do Javari, em especial, é uma das regiões mais isoladas do mundo. Do tamanho do Estado de Santa Catarina, o território indígena tem 8,5 milhões de hectares e é o segundo maior em extensão do País. A área concentra o maior número de povos de língua e tradições desconhecidas. Foi num dos rios que cortam a região que ocorreram os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho do ano passado.

Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bistecas. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus (AM), a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.

A principal organização indígena do Vale do Javari questiona o paradeiro das bistecas. “Nós não recebemos alimentação. Fazer a aquisição e enviar para a aldeia não existe”, afirmou o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis.

O indígena Walciley Duarte, que trabalhava em uma base da Funai desde o fim de 2021, corrobora que “a entrega de bistecas congeladas nunca aconteceu para os indígenas”. Em abril deste ano, ele foi nomeado como coordenador regional do órgão no Vale do Javari.

“Matis não comeu bisteca.”

Indígena do Vale do Javari ouvido pela reportagem durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília.

 

Duarte destacou que só na metade de 2022 o local recebeu um gerador de energia elétrica para armazenar produtos perecíveis. O governo Bolsonaro, porém, fez empenhos para a compra de bistecas congeladas e outros produtos resfriados antes disso. Ainda em dezembro de 2020, a Funai liberou recursos para comprar 285 quilos de bisteca bovina congelada para o Vale do Javari.

Carnes e roupas

Uma das empresas contratadas admite que a bisteca pode não ter chegado aos indígenas. A S B Freire, de Manaus, que tem a venda de roupas como principal atividade, está registrada em nome de Sigrid Beleza Freire. O marido de Sigrid, Jorge Rodrigues, é quem cuida dos contratos. Ele afirmou ao Estadão que não pode garantir que o produto chegou ao Javari. “Não sei dizer se ele entregava. Os indígenas não tinham onde armazenar alimento perecível”, afirmou.

“Ele” é o comerciante José Carlos Costa, dono da empresa “Irmãos Costa”, sediada em Benjamin Constant (AM), que também ganhou um lote da licitação das cestas básicas. Jorge Rodrigues conta que fez um acordo “por fora” com esse empresário para fornecer as bistecas.

O dono da “Irmãos Costa” é o único que atesta a entrega das bistecas. “Eles têm freezer, vão de barco, tem uma logística”, afirmou. O Estadão constatou, entretanto, que até o ano passado sequer havia congeladores no Javari.

Esse contrato específico com a S B Freire foi encerrado pela Funai pela não entrega das bistecas e outros alimentos previstos na cesta básica.

Não sei dizer se entregava. Eles (indígenas) não tinham onde armazenar alimento perecível.”

Jorge Rodrigues, representante da empresa de roupas que recebeu pela venda de bistecas congeladas para a Funai

Na última licitação, feita no ano passado, uma terceira empresa, a H A de Aguiar, foi selecionada pelo governo como fornecedora de bisteca porque ofereceu o menor preço, de R$ 29 o quilo. A quantidade de carne aumentou, porém, na assinatura do contrato, tornando a compra mais cara do que a estimada inicialmente. Dessa forma, o contrato pulou de R$ 175 mil para R$ 197,2 mil. É esse contrato que foi mantido pelo governo Lula, embora as entregas não tenham ocorrido ainda.

O empresário Humberto Abrão de Aguiar, dono do estabelecimento, disse estar pronto para efetuar todas as entregas neste ano, mas já fala em pedir ao governo Lula o reajuste dos valores para dar conta da distribuição das bistecas. “Se você souber o tanto de índio que tem”, argumentou Aguiar.

Com a palavra

Procurada pelo Estadão, a Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas – não se pronunciou. A direção atual do órgão evitou até mesmo responder se irá analisar os contratos em vigor.

O ex-presidente da Funai no governo Bolsonaro, delegado Marcelo Xavier, que respondia pela instituição durante a assinatura dos contratos, também foi procurado, mas não se manifestou.

A servidora Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari, disse que o fez porque foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que a Funai entregasse cestas básicas a todos os povos indígenas na pandemia.

“Na ocasião, foi feito uma Informação técnica e enviada à Presidência da Funai, destacando as diferenças culturais e especificidades alimentares dos povos indígenas do Vale do Javari, mas nunca foi considerada. Então, a ordem da gestão anterior era que os servidores entregassem cestas básicas”, justificou.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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