Enquanto a sociedade não abandonar as esperanças no Estado paternalista e não desprivatizar o Estado patrimonialista, a Nação continuará a agonizar na inanição e na ignorância
Mais de três décadas depois, que vergonha! O Brasil é uma das nações mais desiguais do mundo. Uma das mais violentas também. O País voltou ao mapa da fome. Os jovens que chegam a completar o ensino médio mal sabem escrever ou realizar operações aritméticas elementares. Metade da população não tem esgoto.
A vergonha cala tanto mais fundo ante as potencialidades congênitas de um País preservado de catástrofes naturais, farto em recursos alimentares e energéticos, sem histórico de guerras ou conflitos civis, povoado por imigrantes de todo o mundo que compartilham de uma cultura plural e tolerante. Somem-se a isso as oportunidades da economia verde e as necessidades geopolíticas da Europa e EUA de realocarem negócios em países geográfica e culturalmente próximos.
O abismo entre a utopia inclusivista da Constituição e uma realidade socioeconômica brutalmente desigual e estagnada espelha o abismo entre as elites políticas e econômicas extrativistas e uma massa de excluídos desnutridos e iletrados. A Carta confere um vasto catálogo de direitos. Mas como reivindicá-los quando mal se consegue vencer a luta cotidiana pela sobrevivência?
O abismo social é causa e consequência de uma cidadania totalmente incompleta. Antes, da renitente perversão da cidadania por uma cultura classificada pelo historiador José Murilo de Carvalho como “estadania”. A cidadania, escreve Carvalho no artigo Cidadania, estadania e apatia, publicado em junho de 2001 no Jornal do Brasil, é “a integração das pessoas no governo via participação política, na sociedade, via garantia de direitos individuais, e no patrimônio coletivo, via justiça social”. Nosso Estado, porém, “não é um poder público garantidor dos direitos de todos, mas uma presa de grupos econômicos e cidadãos que com ele tecem uma complexa rede clientelista de distribuição particularista de bens públicos”.
Uma das consequências é a excessiva valorização do Poder Executivo, o encanto do líder messiânico, sebastianista, o grande dispensador de empregos e favores. Outra é a visão privatista dos interesses coletivos. “Não há uma construção social do político”, escreve Carvalho. “Quando a virtude privada estabelece contato com o Estado, gera o aborto do fisiologismo e do clientelismo, quando a virtude do Estado se comunica com a sociedade, gera o aborto do paternalismo e do corporativismo.”
No mercado prevalecem os oligopólios e a falta de competição. As grandes corporações exigem do Estado subsídios e barreiras protecionistas. Os sindicatos exigem a calcificação de leis trabalhistas que tornam as contratações proibitivas. O resultado é um déficit geral de produtividade e inovação.
A contraface do Estado paternalista, o Estado patrimonialista, é o grande promotor de privilégios e impunidade. “Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando”, resumiu Raymundo Faoro no livro Os Donos do Poder (1958).
A espiral viciosa se perpetua. A estagnação econômica acentua a frustração. A ira popular se volta não só contra os incumbentes políticos, mas contra a própria política. Inflama-se a esperança em salvacionistas autoritários. E assim os donos do poder concentram mais poder.
Um círculo virtuoso depende de educação para garantir igualdade de oportunidades; segurança jurídica para garantir isonomia; meritocracia e produtividade para garantir competitividade, prosperidade e mobilidade social. Mas a ativação desse ciclo depende da capacidade de romper o vício de origem da cultura política brasileira. Enquanto a sociedade civil não encontrar modos de desprivatizar o Estado e democratizar o poder, a “Constituição Cidadã” seguirá brilhando no céu das ideias utópicas, enquanto na terra agreste da realidade a Nação agoniza na inanição e na ignorância.