Se os termos da convocação para o ato já não escondiam o propósito de Bolsonaro, o discurso do ex-presidente em cima de um trio elétrico reforçou sua intenção de explorar o público presente na Paulista para afrontar, a um só tempo, a História, a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal a fim de escapar da cadeia. “Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil”, disse Bolsonaro, referindo-se à anistia que pavimentou o caminho para a redemocratização do País. “O que eu busco é a pacificação. É, por parte do Parlamento, uma anistia para aqueles pobres coitados presos em Brasília”, completou, tratando como “pobres coitados” a malta ensandecida que vandalizou física e moralmente as instituições democráticas no 8 de Janeiro.
Por óbvio, Bolsonaro não dá a mínima para as agruras no cárcere experimentadas por cada um daqueles homens e mulheres, jovens e idosos, que, em seu nome, passearam naquele dia infame pelos tipos penais previstos na Lei 14.197/2021, que trata da defesa do Estado Democrático de Direito. Como sempre, Bolsonaro está preocupado apenas com seu destino – no máximo, com os de seus familiares e aliados próximos. Nesse sentido, é bastante sintomático que Bolsonaro tenha agradecido a seus apoiadores por terem proporcionado “uma fotografia para o mundo, uma imagem para o Brasil e para o mundo do que é a garra do povo brasileiro”. Era só com isso que Bolsonaro estava preocupado.
A política que faltou no discurso de Bolsonaro sobrou no de Tarcísio de Freitas. O governador paulista, único a quem foi dada a palavra entre os governadores presentes na manifestação – Romeu Zema (MG), Ronaldo Caiado (GO) e Jorginho Mello (SC) –, fez um breve inventário de algumas das alegadas realizações da gestão Bolsonaro. Logo em seguida, destacou que os milhares de manifestantes reunidos na Avenida Paulista lá estavam para “celebrar o verde e amarelo, o amor ao nosso país e o Estado Democrático de Direito”, sendo fundamental “entender os seus desafios”.
O poder de mobilização de Bolsonaro é incontestável, como mostra a multidão reunida na Paulista. Mas, enquanto o ex-presidente se limita a vociferar contra o “comunismo” em cima de um carro de som e a se dizer “perseguido”, Tarcísio e outros já estão com os olhos no futuro e seus “desafios”.
Essa direita se une por Bolsonaro hoje na exata medida da necessidade de preservar para si o potencial eleitoral do “mito” – mas é bom lembrar que o governador paulista, tão agradecido a seu padrinho, é o mesmo que não se sentiu constrangido em estabelecer um diálogo construtivo com o presidente Lula da Silva, demonizado pelos extremistas de camisa da seleção brasileira, e em apoiar a reforma tributária à revelia do ex-presidente. Ou seja, os prováveis herdeiros de Bolsonaro, ao mesmo tempo que compreendem as demandas – muitas das quais legítimas – dos que foram à Paulista, oferecem a superação do radicalismo bolsonarista, não só para ampliar o eleitorado fora da extrema dglireita, mas, sobretudo, para deixar claro seu caráter democrático – essencial para a pacificação que Bolsonaro só quer da boca para fora.
Comentário nosso
Depois do concorrido enterro do bolsonarismo com Bolsonaro, começa a briga pela herança do ex-presidente. Tarcísio de Freitas é o herdeiro mais visível e mais apressado para garantir a posse da herança. Enquanto o inelegível Bolsonaro implora pela anistia, não só dos pobrezinhos bagunceiros do 8 de janeiro de 2023, mas de seus parentes e amigos mais próximos. Bolsonaro quer pelo menos se livrar da cadeia, já que não tem como recuperar a elegibilidade antes de 2030. Enquanto isso seus partidários mais privilegiados querem se garantir para 2026 e 2030. (LGLM)