Há diversas dúvidas sobre a legalidade da campanha das plataformas digitais contra o PL 2.630/2020; por exemplo, se a inscrição num serviço de mensagens significaria também uma automática autorização para receber material de cunho político produzido pela empresa. De toda forma, nenhuma dessas questões – que merecem cuidadosa reflexão e, se for o caso, uma adequada responsabilização pelo Judiciário – justifica a decisão de ofício do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinando a remoção de conteúdos críticos ao projeto de lei (ver o editorial O sr. Moraes não é juiz do debate público, de 4/5).
Mas, além das discussões a respeito de sua legalidade, a mensagem enviada pelo Telegram a seus usuários explicita uma enorme confusão sobre aspectos básicos do Estado Democrático de Direito. Talvez aqui esteja o aspecto mais preocupante de toda essa história. Empresas globais, com enorme influência sobre a vida de tantas pessoas, estão difundindo uma compreensão rigorosamente equivocada da lei e das liberdades civis.
O texto do Telegram começa dizendo que “a democracia está sob ataque no Brasil”. Eis a visão dessa turma: a discussão pelo Congresso brasileiro sobre um marco jurídico para as plataformas digitais estaria colocando em risco o regime democrático no País. Nada menos. Trata-se de acintoso ataque às instituições nacionais e aos próprios brasileiros, que elegeram os parlamentares que analisam o PL 2.630/2020.
Sem pudor, o aplicativo de mensagem explicita que, para seus donos, democracia não é o que está disposto na Constituição, mas apenas e tão somente o que eles acham que é a democracia. No caso, o PL 2.630/2020 – que contraria seus interesses comerciais e amplia suas responsabilidades – é tachado imediatamente de antidemocrático.
Segundo o Telegram, o projeto de lei que amplia as responsabilidades das plataformas “matará a internet moderna”. Nessa advertência, há mais do que simples sentença dramática, com o objetivo de despertar o temor de seus usuários. Há a visão de que a internet demanda um território sem lei, sem limites, sem responsabilidades. Mais: há a compreensão de que a própria liberdade demandaria a menor presença possível da lei. Sob essa lógica, toda a legislação relativa à internet deve ser a mais frouxa possível.
Entende-se, assim, a oposição ferrenha das plataformas contra o PL 2.630/2020. Não é apenas que o texto interfira em seus interesses comerciais e financeiros. O problema é mais grave. O projeto traz novas responsabilidades. Define limites para as empresas. Estabelece deveres de transparência. Nada disso é aceitável para o Telegram, que é explícito em sua ameaça. Se não continuar do jeito que está, a empresa promete interromper seus serviços no País.
Diante dessa atitude incivilizada, é necessário recordar alguns pontos. As leis não impedem o exercício das liberdades. Só num país onde há o império das leis – onde há limites e responsabilidades para todos – é que cada um pode exercer plenamente seus direitos e suas liberdades.
Sem lei, manda quem é o mais forte. E só o truculento exerce a “liberdade”, que se torna, na verdade, arbítrio. O restante tem de se adequar ao que o mais forte deseja. No mundo atual, não é difícil de identificar quem são os mais fortes que querem impor suas vontades aos demais – e que não desejam sequer ouvir falar em regulamentação.
Felizmente, há democracia. O debate público não é apenas o que alguns gostariam de impor. Ao analisar o PL 2.2630/2020, que o Congresso tenha a valentia de olhar o interesse público, sem se incomodar muito com os que querem ficar no País apenas se a lei for do jeito deles.